20100207

my lonely world of grey

Imagine uma cena comigo, então.

Imagine o maior deserto que você já viu, com direito ao infinito horizonte em todas as direções. Com direito à esterilidade seca, a apoteose mítica de cada grão que cobre a vastidão daquele chão sem deus. Ponto a ponto, quilômetro por quilômetro, você verá, com aquele olho da mente que todos nós temos, tijolos. Tijolos em seu ordenado emaranhado, com seu esqueleto de metal indestrutível, agora ruíndo às ferrugens que estão fadados, não importa o que os mortais humanos digam.

E esses tijolos formarão casas, prédios, fábricas, chaminés, criptas de um mundo que já se foi em meio ao tempo.

É um triste cenário, sim. Mas some a isso tudo um céu cinza. E o cinza se estende em direção a todos os infinitos horizontes que o olho da sua imaginação consegue conceber, e imagino que estejamos perto do infinito realmente.

Estamos vendo então um deserto do que um dia foi uma cidade. E não é um deserto de areia, é um deserto de cinzas.

Tudo é cinza, tudo é lama seca no deserto.

Mas não é vazio esse deserto, não. No canto dos seus olhos, na parte onde você não vê com certeza, mas vê assim mesmo, existe vida. Algumas são como vocês podem conhecer. Ratos, baratas, alguns distantes corvos no céu. São animais da carniça e da desolação, e só eles conseguiram sobreviver àquela mímica de estrelas que varreu todo o planeta.

Há vida no canto do seu olho.

Há mecanização no centro do seu olho.

Quando o mundo seguiu adiante, se perdendo nas cinzas e no calor, se perdendo no infinito dos seus horizontes, a brincadeira de ser deus do ser humano permaneceu. Afinal, era a máquina meia-humana ou o humano meio-máquina?

Robôs se espalhavam pelo cenário. A maioria já estava parada, enferrujando como latas de refrigerante. Enferrujando como o coração dos poucos humanos que sobreviveram.

Mas continue imaginando, agora que você compreende o que nos aguarda.

No fim de todos os horizontes, há luz. Branca, quente. É a luz do sol, nosso eterno pai, lançando suas lágrimas de luz ao povo que esqueceu de si mesmo. E uma réstia, fina como as razões humanas, desce ali, na frente do quadro que você está pintando comigo. E essa luz, pela incrível ironia de todos os deuses do universo, ilumina o topo de uma pequena colina, nua em cinzas.

Você alguma vez já reparou as cores em um mundo cinza? Elas parecem gritar, parecem tentar se expremer todas de uma só vez por entre seus olhos, e seus olhos as recebem, como sedentos achando um oasis. E as cores são os oasis desse deserto cinza.

No seu olho agora existe uma pequena garota. E essa pequena garota, naquele mundo que já morreu, era muito, muito mais do que aqueles animaizinhos no canto do teu olho ou os sensores daquelas máquinas no centro dele queriam imaginar. Na mão dessa garota, uma fina corda sobe aos céus, quase invisível, mas refletindo a luz que desce naquela pequena falha no cinza que cobre todos como a linha de prata que prende um sonho à sua cansada cabeça. Na ponta dessa corda, se estendendo à leve brisa que ninguém vê, mas todos sentem, até mesmo os sensores daquelas pequenas máquinas, está um balão vermelho.

Um vermelho vivo, um vermelho notável. Um oasis desse deserto cinza.

A face dessa menina é negada a nós que pintamos essa imagem. Seus longos cabelos, cinzas naquela luz, encobrem seu rosto, e o balão vermelho acima dela parece sorrir com amargura, num jogo de luzes a muito não visto naquele mundo. Uma imagem única.

Porém, o mais necessário para entender essa imagem, você só percebe agora. Como alguém que acaba de dar seu primeiro suspiro após anos de coma, a realidade aparece, brinca, sai da caixa como um pequeno palhaço com sua enferrujada mola eternamente presa embaixo de si.

Parado em frente à menina do vestido rosa, está um robô.

Sua carne crua e metálica se estende nas formas de um ser humano, dois metros de altura e quase meia tonelada de aço eterno, eterno num mundo de cinzas. O rosto dele, com aqueles elétricos olhos azuis, azuis tão brilhantes como o vermelho do balão, tão frios quanto o outro quente.

E você vê então a parte visual completa desse nosso quadro. Um grande robô, uma pequena criança. O azul dos olhos, o vermelho do balão. O cinza do mundo e o dourado do sol.

Até o infinito.




Mas talvez, naquele futuro, se houvessem ainda pintores ou pessoas que poderiam te mostrar esse quadro, eles talvez lhes contariam ou mostrariam mais do que os olhos podem ver.

Talvez eles te fizessem sentir o ozônio estalando na sua garganta, vinda da eletricidade que emanava dos olhos azuis e frios daquele robô.

Talvez eles te fizessem ver a suavidade de pequenas gotas de óleo descendo pelos cantos danificados dos olhos azuis e frios daquele robô.

Talvez eles até podessem te fazer ler as palavras que gotejavam do robô, eternizando um amor que ele não havia sido programado para sentir. Nem a culpa que agora gritava por entre circuitos e fluídos daquela máquina, que se misturavam ao calor do sangue da menina, que brilhavam fora da vista de quem visse o nosso quadro.

E você perceberia, se ainda fosse humano o suficiente, você entenderia que num mundo cinza, onde as cores eram oasis e ser não precisava necessariamente significar viver, que estamos fadados a morrer por aquilo que não entendemos. Fadados a morrer por aquilo que sentimos. E no fim, nós mentimos. E no fim, nós guardamos tudo para nossas pinturas. No fim, estamos todos mortos.

Estamos todos mortos.



Thomas Hanauer
07/02/2010