20100929

palavras pra te fazer sorrir

Estava escuro ali. Um crepúsculo enjaulado pelas paredes. A luz que vinha era amarela, de algum lugar na imensidão do teto. Sódio, ele achava. A noite lá fora já brincava há horas. Ele achava que podiam ser onze horas, meia noite, outro mundo. Ele havia perdido a conta com a situação, e não se importava com isso. Ele podia ouvir o mar, os carros passando velozes, cada um carregando suas histórias, seus arranhões. A porta de madeira escura parecia sobrenatural naquela luz suave, um portal pra sonhos maiores na penumbra. O sofá era confortável, e ele via suas mãos nos braços da poltrona. A tela da televisão era um espelho de reflexos, o murmurio do vento passando pelas janelas de vidro e indo se perder por aí o deixavam confortável. O som da água escorrendo, batendo no chão, do chuveiro por trás da porta enchia sua mente. De risos, de abraços. De lembranças, de planos. Era impossível controlar aquele sorriso que se permeava por seus lábios.
Engraçado, aquelas borboletas na barriga. Fazendo cócegas no seu estômago, parecendo esquentar todo o peito. Seus olhos por trás dos óculos esquadrinhavam toda a cena, sedentos por guardar aquelas memórias por muito tempo. Ele podia viver com a idéia de que isso nunca seria pra sempre, mas não poderia se conformar consigo mesmo se não fizesse daquilo algo eterno. Olhou pra fora, deixando seus ouvidos registrarem o som suave do registro da água sendo fechado, e as últimas gotas estalando no chão. De baixo da porta, o cheiro era úmido, doce, suave. Ele sempre amou aquele cheiro, ainda mais agora que ele vinha um pouco diferente, mesclado com o cheiro daquela pele.
O trinco girou, e ele sentiu o ar se deslocando com a porta. Era uma tempestade, uma dança louca no seu estômago.
O vapor de água veio rolando, flutuando no ar. Ele entendeu como a água devia se sentir. Seus pulmões se contrairam, libertando as borboletas. Seu fôlego não via jeito de ficar nos seus pulmões, não com ela ali na frente dele. Sua camiseta cobria a parte de cima do corpo dela, e o resto se resumia a só uma peça. Ela ficou ali parada, a luz brincando de mil tonalidades, mil contrastes nela. Ele parecia conhecer cada curva do corpo dela, e parecia ansiar em conhecê-las de novo. Suas mãos se contrairam de leve por cima da poltrona, e seus olhos brincavam no corpo dela. Começavam dos pés que se apoiavam em pontas e iam subindo pelas coxas. Ah, aquelas coxas eram a apoteose de todo o desejo dele. Firmes, mas suaves. Brancas, lindas. A luz parecia guiar seus olhos, subindo, subindo, parando pra sorrir entre as coxas e o quadril. Os ossos despontavam do quadril, um convite às suas mãos, à sua boca. Não havia como parar os olhos, e eles absorviam cada detalhe, subindo pela barriga, pelo volume dos seios dentro da camiseta. Seu rosto sorria pra ele, por cima daquele pescoço delicado, que ele já sabia onde mordiscar.
Sabe quando tu entende que as coisas podem fazer sentido só vendo um sorriso? Que tu pode esquecer tudo que aconteceu antes, depois, o tempo é nada, por um sorriso? Era assim que ele se sentia.
O sorriso dela só embelezava ainda mais o rosto dela. Era grande, quente. Os lábios dela pareciam convidá-lo a se levantar e tomá-la nos braços, mergulhar neles, beijar, morder, sentir o calor. Os olhos brilhavam na luz amarelada, o cabelo dela caia pelos lados do rosto. Em quantos sonhos, em quantas tardes, ele já havia visto aquele cabelo? Era como ele gostava, e até mesmo quando ele estava enrroscado na sua mão, ele era lindo.
Em suma, enquanto seu fôlego se esvaziava e aqueles segundos pareciam durar uma vida toda, ele a amou. Amou o corpo, a presença, o sorriso. Amou cada centímetro do corpo dela, cada pensamento bom que ela trazia e todos os ruins que ela ofuscava.
Quando viu, estava levantando da poltrona, indo em direção à ela. O mundo lá fora era outra coisa, e as consequências que esperassem do lado de fora. Será que um dia ela saberia quão sortudo ele se sentiu naquele momento? Quão feliz? Ele esperava que sim.
Enquanto os lábios dele encontravam o dela, as mãos iam para a pele e a blusa ia de encontro ao chão, ele pensou que um dia talvez escrevesse sobre aquilo quando tudo aquilo ainda brilhasse em sua imaginação.



feliz aniversário
meu anjo
30092010

20100928

como fogo

O fogo subia, lambendo as paredes sujas, confrontando a garoa fraca que caía na rua. Era o número 621 da rua principal, e agora ele ardia em um inferno rubro. Os céus cinzas, metálicos, derramavam aquela água que mais parecia uma zombaria, por de nada adiantava contra a força das chamas. Toda a parte frontal do prédio estava enegrecido pelas línguas de metros e metros, soltando aquela fumaça espessa que seria vista por quilômetros de distância.

Em cada poça de água da rua, o reflexo do fogo parecia queimar mil outras dimensões, um espelho sem fim daquela loucura.

As pessoas em volta corriam. Algumas paravam e colocam as mãos na cabeça, se perguntando que mente havia iniciado tamanho caos, tamanho poder começando na cabeça diminuta de algum fósforo já há muito queimado. O irônico era que algumas pessoas estavam ali só para apreciar o estrago, se deliciando com os estalos e o rugido do fogo, as lágrimas que escorriam da tinta da parede.

O céu zombeteiro continuava seu rumo, as sirenes já despontavam no limiar da audição, a luz enchendo todos que estava ali perto. O trânsito parado, o ser humano em sua eterna necessidade de ver a desgraça do próximo desacelerando até quase parar para contemplar a destruição.

Aquele fogo selvagem dentro de cada um. E dentro desse fogo, no núcleo daquela reação, juntos na esquina, talvez o estopim humano daquele fogo. Duas pessoas, duas almas, dois corações se contentando com o calor e o infinito, entrelaçados nos braços um do outro. Era selvagem, mas era delicado. Apesar de tudo, eles só estavam aproveitando o fogo como todos ali, e as risadas deles enchiam alguns de terror, outros de contentamento.

E na mente de todos, e na mente de nenhum. Como, afinal, alguém poderia temer algo que brilhava em todas as poças daquela rua?


t.

20100924

a volta pra casa (pt. I: infinito)

Eu volto, eu sempre volto. Eu volto melhor, mesmo tu não esperando por mim. Tu sabe que é verdade, eu sempre estive aqui pra provar que eu faço essas coisas.


Passava pouco do meio-dia agora. O ar estava abafado, elétrico. Algo sobre alguma tempestade para o final do dia. O sol, entretanto, ainda refletia no capô do carro, lançando raios de luz que refletiam nas lentes dos seus óculos, provocando explosões de luzes dentro do seu cérebro. As janelas iam fechadas, o ar-condicionado funcionava, e no rádio alguma música daqueles tempos tocava. Algo sobre a casa que Jack construiu. O ocupante do carro usava uma camiseta cinza, um jeans azul-escuro, seus tênis apertando suavemente o acelerador. No banco ao lado, algumas cópias de seu mais recente livro, alguns rascunhos apressados. No chão, uma pasta com o símbolo de algum raio esquecido por enquanto. Não havia pressa, havia dúvida. Via poucas pessoas na rua, ainda faltavam dois meses até o pico da temporada. Enquanto descia a colina em direção à cidade, suspirou de leve.

A cidade era uma velha conhecida dele. Dez anos atrás e ela era parada obrigatória, pelo menos uma vez a cada quinzena. Ele conhecia seus caminhos de cor, sabia onde ir, onde levar seus passos. Ele gostava de lá. Era pequeno, pacato, não havia crescido muito nesse tempo. Alguns prédios a mais, restaurantes que mudaram de nome, seus pássaros em todas as ruas. E descendo a colina de acesso, seu carro vinha descendo, absorvendo a luz do sol.

Parou na primeira entrada que achou. Precisava sentir o mar e lembrar de tudo. Fazia tempo, e ainda doía. Parou o carro, pensando que se a achasse, ainda iria apagar o carro na saída e xingar baixinho. Saiu do carro, e o baque do cheiro foi como uma avalanche, como uma onda maior das milhões que quebravam ao alcance dos seus passos. Assim como ele se lembrava, a cidade estava quieta, só o rugido das ondas e o assovio do vento tocando grãos minúsculos de areia contra seu corpo, batendo nos óculos e revolvendo seu cabelo. Sentou-se à beira da areia, em um murinho de cimento. Perdeu o tempo e perdeu o céu. Quando finalmente os anos o deixaram voltar para sua própria órbita, seus braços estavam avermelhados. Nada bom, velho sol. Nada bom.


- Eu nem imaginava que tu iria vir!
- Mas eu disse pra ti que viria, e quando eu falo, eu venho. E vamos lá, coloque um sorriso nesse rosto e me convida pra entrar.


O relógio no pulso já dizia que eram quase quatorze horas e ele decidiu seguir seu caminho. Não havia muito o que fazer por ali. Ele só precisava apaziguar aquilo tudo, enterrar e guardar todos esses momentos que mesmo dez anos depois ainda insistiam em voltar à noite, quando a hora é nenhuma e todos os sonhos do mundo gritam sua coragem.

Virou-se olhando pro céu, vendo nuvens que se formavam perto dos morros, ainda longe do sol. Abriu a porta do carro, escutando o tique-e-taque, e apertou o botão da capota. Ficou ouvindo o zumbido do motor elétrico liberando o teto do carro, retraíndo a capota. O couro claro, cobrindo os dois únicos lugares do carro, pareciam querer fugir e se juntar à areia. Talvez ele quisesse isso também, só se sentar lá e ouvir as ondas até que tu do desabasse como deveria ser.

Entrou no carro, colocou a chave na ignição, engatou a ré e foi saíndo, manobrando, até voltar pra estrada.

Ele estava com medo da tempestade.


- Eu tenho muita sorte mesmo, é só sair da tua casa que começa a chover, hein! Será que alguém vem me buscar?


Entrou na rua principal, sentindo o cheiro do mar, a brisa morna. Ele se lembrava como se tivesse sido ontem, era a quinta depois do mercado. Acelerou um pouco, mas sem passar dos quarenta por hora. Não era um dia de pressa.

Como sempre, como anos atrás, ele só lembrou da seta para virar quando estava em cima da curva, mas a fez mesmo assim. Subiu a pequena rua e seguiu à direita. A cada metro, eram lembranças. O sorriso dela parecia estar no seu ouvido, o calor da respiração dela no ombro dele, cada centímetro de pele colada na dele. Estava perto, cada vez mais perto. Parou em frente aquele lugar que tantas vezes antes havia parado. Não esperava mesmo ver aquela casa, mas sentiu um aperto engraçado na garganta ao notar o prédio que agora estava ali. Apagou o carro e ficou olhando em frente, ao longe. Tamborilava os dedos na direção sem se dar conta que era o ritmo de uma música que ele havia mostrado há muito tempo atrás, antes de sonhar com isso tudo.

Olhou para o relógio, eram quase quinze horas. As nuvens se pronunciavam ainda mais, o tempo ruim.

Ligou o carro, contornou a rua pensando se já era hora de ir embora.


- Quer vir dormir aqui? Eu vou te buscar.
- Eu quero ir, mas.. Mas eu tô com medo.
- Não precisa ter medo, eu vou cuidar de ti.


Parou em algum mercadinho aleatório. Não queria mais pensar muito, o sol nem parecia brilhar mais. Talvez chovesse antes do que ele pensava. Entrou e foi andando pelo mercado, simplesmente perdendo tempo, mais tempo, e ele teria que se contentar com isso. Ela se fora, e com ela muita coisa. Ninguém espera por ninguém e a cada noite é pior. Olhou para o relógio e o tirou. Colocou no bolso e avançou até as prateleiras do fundo, querendo pegar algum chocolate e ir embora, voltar pra qualquer lugar. Ele precisava tirar aquele amargo da garganta. Pegou qualquer um, não fazia diferença. No fim, nada fez muita diferença.

Foi caminhando devagar até o balcão, abençoando a penumbra que havia ali dentro. Todas as embalagens coloridas pareciam opacas, vazias por dentro. Como tudo que ele ainda tinha pra acreditar. Viu seus livros em uma pequena estante. Viu uma garota, só alguns anos mais nova, folheando um deles. Ele já havia visto aquele cabelo e aqueles quadris em algum lugar, não tinha?


- Não consigo extamente me ver como um escritor famoso. Provavelmente eu vou terminar como um escritor falído e alcóolatra.
- Faz o que tu quiser, só não para de escrever!


O relógio machucava a pele dele, devia ter a ver com a temperatura, irritando a pele. Tirou-o do pulso esquerdo e escorregou para dentro do bolso da calça. Em algum lugar, algo sobre estar perdido e ter alguém pra lhe guiar era cantado baixinho. Decidiu que veria como andavam os preços, buscando pelo seu livro preferido, desde sempre. A Tua Mão na Minha. Ele lembrava até hoje de ter começado a escrevê-lo quando ainda estava na faculdade, brincando de explodir coisas com eletricidade, desejando poder parar o tempo naqueles anos tão completos.
Esticou a mão esquerda, que estava sem relógio, revelando uma pequena tatuagem, o encontro de dois círculos. Passou pelo lado da moça que via seus livros também, torcendo pra não ser reconhecido. Havia fãs realmente engraçados, e alguns amedrontadores.
Ele sentiu. Foi quase como uma descarga elétrica, arrepiando até ele. A moça deu um pequeno pulo ao ver seu pulso passando ao seu lado em direção à prateleira. Temendo tê-la assustado, ele já repassava na mente mil desculpas pelo incômodo, quando viu também.


- Eu sempre quis tatuar o símbolo do infinito no pulso, é o meu lado nerd falando mais alto.
- Ah, eu também sempre quis, nem vem!


O pulso dela mostrava o mesmo que o pulso dele. Dois zeros colados, um oito deitado, tanto faz. Era o infinito, o infinito naquele mercadinho escuro no meio de uma praia que há muito ele havia deixado. Seu estômago deu voltas, suas pupilas contraíram rapidamente para irem se dilatando ao extremo, sua pele arrepiou.

Simplesmente não podia ser.

No meio de todas as probabilidades, no meio de infinitas estatisticas e chances e tudo o que ele acreditava. Ela ia se virando, e o tempo pareceu segurar todos os seus cavalos e fazer daquele mais um desses segundos que duram pra sempre e tu acaba lembrando pra sempre em todos os dias que o sono demorar pra vir. O contorno daqueles olhos, tão únicos, que ele havia reparado logo, e o cheiro dela, o cheiro dela o fazia querer perder os sentidos. Eram os mesmos lábios, os mesmos olhos, as mesmas linhas. Era espantoso, e o chocolate e o livro caíam de suas mãos frouxas, e os braços, lado a lado.

Um segundo que durou pra sempre.


- Eu volto pra te buscar.



t.

Post-Mortem

originalmente escrito em 8/09/2010,
com a proposta de redação sendo o diário de
algo que não seja humano.



Eles sempre esperam por mim. Todo dia, toda hora, apesar do medo racional pela minha vinda inevitável. É por isso que estou aqui sentada, minhas asas escuras como meus olhos dobradas para trás.

É pele, eu acho. É pele este pedaço que resolvi tomar como diário. As letras são escarlates e a ponta afiada de uma pena minha corta limpo as palavras.

Todos eles esperam por mim e eu nem sequer posso me visitar parar me livrar dessa dor, dessa angústia.

As imagens vem até mim, uma criança, só uma criança e eu estou tão cansada de livrá-los de seus eternos jogos, tão mais eternos que todos eles juntos.

É sempre assim, todo dia. Esse diário terá uma só página, porque eu sei que vai ser sempre assim, até que o último deles venha dançar nas minhas asas.

O ódio. O ódio que eles tem de mim, como se em algum ponto eu pedi para ser isso. Eu venho até eles, os que clamam e os que temem. Às vezes eu sou a única que vai visitá-los, a única que oferece abrigo, envoltos em minha asas frias, mas completas. A única certeza nesse circo de dúvidas que eles criaram.

Eu já posso ouvir ao longe um choro de criança, prevejo os gritos, as pragas, o meu nome amaldiçoado de boca em boca.

Eu não queria ter que fazer isso.

Vou deixar essa página aqui. O nome de todos eles queima na minhas costas.

Vai ser sempre assim.

20100915

rotina (os lados)

Era só um dia como qualquer outro. O despertador o arrancou dos sonhos para uma realidade que não parecia promissora. A rotina ia lentamente consumindo a sua força, a sua vontade. Todos os planos pareciam pálidos, e ficar sentado lendo parecia um bom jeito de passar as horas cada vez mais vazias. As músicas estavam sempre entonando o ar, mas não prestava mais tanta atenção.

Ele se vestiu, como sempre. O sol ia filtrando pelas frestas da janela, esquentando o aço que passou a noite protegendo o quarto do mundo frio lá fora. O barulho das ondas lavando a areia, hipnotizando o mundo com seu suave murmúrio. Os minutos vazios onde ele esquecia quem era iam ao pouco indo embora, e o peso da realidade caía. Não havia perspectivas pro dia, não havia vontade. Era automático, era rotineiro, a vida não vai mudar hoje.