20091228

Rascunho de aniversário

Todo mundo tem momentos em que a "coisa ta preta", e cada um tem o seu jeito de resolver, ou a maneira de se aliviar.
O que me ajuda são as palavras. E aqui, encontro alguém com uma imensa habilidade com elas.
Se não me resolvem o dia, ao menos me confortam e dão segurança. Seja encontrando as respostas de perguntas jamais solucionadas, testemunhando aquilo que ninguem vê, ou só pra sentir a tua mão na minha, é com as tuas palavras que meu dia melhora.
Sinceros agradecimentos,
Lhama

20091217

o que ninguém vê

Uma fria noite, tão rara em dezembro, e era tudo isso o que ela precisava.

Seus pés descalços percorriam as vazias ruas da cidade, esperando achar algo pra chamar de seu. Alguma casa, alguma paz de espírito.

Seus pés descalços caminhavam sozinhos, e era tudo isso o que ela precisava.

Sua cabeça pendia em direção ao infinito, seus olhos eram opacos, antes vistos de brilho. E ela caminhava. Seus ouvidos estavam fechados para toda a pulsação de vida da cidade, sua boca contraída, sentindo o amargo gosto de vazio. Seu nariz não sentia a fumaça e o fracasso ao redor, sua pele só sentia a si mesmo enquanto ela se abraçava, tentando entender.

Sua cabeça era um turbilhão,e mil estrelas explodiam atrás dos seus olhos. A dor era constante, era um lembrete.

Seus pés a levavam em direção a caminhos que só eles sabiam. Como um pássaro que o vento tira do seu caminho, por motivos sem explicação, ela continua. Seus pés martelam o concreto e seu coração martela seu peito.

Quanta sorte você precisa para as coisas fazerem sentido?

"Não tenha medo", eles lhe disseram. Mas ela sempre achou que era preciso temer muito para aconselhar alguém a não tê-lo.

"Não tenha medo", eles lhe disseram.

E ela escondeu suas feridas fundo, mesmo sabendo que esconder as feridas nunca aliviaria a dor. Esconder as cicatrizes talvez as faça sumir no esquecimento, mas alguns cortes sempre irão sangrar. E quanto mais fundo, mas doeria.

E ela se culpa.

Suas mãos se fecham em seus braços, seu cabelo voa em leque àquela brisa solitária, que assim como ela, caminha pelas ruas vazias, procurando um por quê. Alguma casa, alguma paz de espírito.

De qualquer modo.

Ela chega à praça onde sonhou correr com seus filhos, sentar e vê-los brincando por entre as árvores que ela mesmo havia brincado alguns poucos anos atrás. Um leve sorriso iluminou aquele rosto cansado a pensar na simplicidade que as coisas às vezes podem ter.

Mas como uma vela, aquela luz se apagou, minguando. Seus olhos procuram uma direção, e ela sabe que se olhar muito, ela achará, ela se convencerá que há alguma, e no fim isso machucaria também. Ela fecha seus olhos pra esconder as lágrimas de um mundo que não se importava.

Procurando por si mesmo, por entre a escória e a falsidade urbana daquele lugar. Procurando por si mesmo em suas dores, procurando por si mesma em suas escolhas.

"Você sabe que eu vou estar sempre aqui"
Ela morde seu lábio com força, e uma solitária gota escarlate escorre.

"Você sabe que eu te amo"
Suas unhas agora sujas riscam seus braços.

"Nós estamos juntos, nisso e em tudo"
Sua cabeça levanta e lágrimas se juntam com toda a dor.

Uma claridade espectral e fria vem se levantando do outro lado da cidade. Ela treme, sentindo o calor de todas as toneladas do mundo naquels riscos em seu rosto. Ela jura pra si mesmo, e jura pra essas pedras, flores, dores e escolhas, que essas ruas e essas luzes ainda seriam sua casa. Que seu sorriso ainda seria leve, onde alguém se importasse de verdade. Escolhas sem dor. Um lugar longe de tudo que só a fazia chorar.

E era tudo isso o que ela precisava.

Thomas Hanauer
17/12/09

todas as perguntas que nunca tiveram resposta

A manhã crescia sobre a cidade.

Juntos, então, eles saíram para aquela quer seria a última caminhada.

O vento gelado percorria as ruas vazias. A cidade, antes um grande centro, estava vazia. O vento carregava em seus pés um cheiro acre de rebelião, o cheiro de pneus queimados e sangue há muito seco. O vento carregava roupas, papéis, esperanças. Jornais espalhados pela cidade anunciavam uma guerra que já não fazia mais sentido.

Mas juntos, então, eles caminhavam.

De mãos dadas, almas atadas e corações leves.

- No topo da Drazil? - perguntou Eddie.

Anita assentiu e continuaram seguindo pela avenida vazia.

As fachadas de todas as lojas aparentavam ter sido fechadas às pressas. A maioria delas estava com as vidraças quebradas e seu conteúdo esvaziado em segundos por aquela raça que só sabia brincar de esconde-esconde com o próprio fim.

Mas ora ou outra, a vida é quem batia o caixão.

A guerra que os jornais anunciavam pouco importava para os dois. Coisas mundanas desse tipo não adiantavam muito contra uma decisão tomada. Fugir, para eles, não seria uma escolha. Eles não abandonariam o lugar onde haviam crescido, se conhecido e passado a entender aquilo que muitos brincam. Juntos, eles haviam entendido mais da vida do que todos que haviam fugido da cidade.

Aquela sempre havia sido uma cidade conturbada num mundo não muito diferente. Roubos, mortes, estupros, bêbados, prostitutas, mendigos. Decadência. No futuro, essa época seria conhecida como o Prelúdio da Apoteose, e os que fugiram e conseguiram sobreviver à humana brincadeira de ser deus, comentariam que fora uma época boa.

Eddie e Anita eram tudo, eram uma rosa que floresceu no concreto sujo de fuligem e sangue daquela cidade, naquele mundo há muito abandonado pelo seu criador.

Os passos dos dois ecoavam nos prédios vazios. Janelas quebradas e esporadicamente alguma mancha vermelha no chão. Muitas pessoas haviam abraçado o vento por uma única vez desde que a rebelião se instalou na cidade. Cicatrizes de guerra, diziam os governos. Mas cicatrizes não eram feridas que já sangraram? Aquela ainda derramava muito sangue ao tempo de ser chamada cicatriz.

A ponte Drazil se estendia por sobre o rio Anders, cujas águas brilhavam azuis em tempos melhores. A madeira estava em ruínas. Estendia-se para o céu cinza como os espinhos de um cacto. Carros e mais carros jaziam como lápides de pessoas que não conseguiam atravessá-la por causa do intenso trânsito, abandonados para enferrujar. Os epitáfios eram marcas de carro e embalagens de comida deixados para trás. Epitáfios de um mundo onde o dinheiro era mais essencial que seguir em frente.

Drazil ficava em cima de dois morrotes, se estendendo por um vale que era cortado pelo Anders. A altura dava uma visão total da cidade e foi para lá que eles subiram.

De mãos dadas, almas atadas e corações leves.

Uma discreta e ornamentada escada de madeira nobre circundava o primeiro pilar da Drazil, e ia até o pequeno platô no topo. Cada centimetro da escada servia de eterna recordação de nomes de gerações de corações que bateram juntos naqueles degraus. Do local onde estavam, ela parecia toda feita de ébano, escura e indestrutível. Os dedos das mãos opostas dos dois tocou os degraus e eles subiram.

Foram juntos andando até os céus, conquistando o mundo embaixo dos seus pés.

Palavras se tornam desnecessárias quando algo muito importante vem a tona. Palavras machucam, mãos dadas curam. Pensar na irrelevância de todo o resto, pensar no sorriso de entregar o mundo pelo brilho de um olhar foi como o combustível de Eddie e Anita. Eles sabiam do que iria acontecer, mas estando os dois juntos, eram mais fortes e corajosos do que todos. E era nisso que eles acreditavam.

Era nisso que eles entendiam, e diziam com seus sorrisos ao sentarem no topo da ponte mais velha da cidade.

E aquela foi a magia que eles entenderam, o contraste de algo que marcou um começo, para eles, para algo que marcaria o fim, para tudo ali ao redor, tudo que para eles parecia tão explicável.

Eles juntos tinham uma visão de talvez 20 ou mais quilômetros da cidade, e o rio se fundia com o céu cinza ao longe. As fachadas eram todas cinzas, quase completas, sem o terror do que havia acontecido ali. O centro era um amontoado de torres, e ao redor daqueles dois corações, lascas e troncos de madeira se estendiam ao céu.

Ali, juntos, eles entenderam.

Estavam abraçados, o braço de Eddie por cima dos ombros de Anita. As mãos dadas, e eles realmente acreditavam no poder disso.

Eles se encaram no infinito dos olhos.

- E nós estamos aqui, Anita. E eu vejo além dos teus olhos.

Ela levanta mais o rosto e o contempla.

- Acho que a gente entendeu antes que todos que sempre houve uma razão, que nós nunca fomos feitos pra fircamos sozinhos. - ele diz, e sorri.

Ela sorri de volta.

No outro oposto da cidade, o segundo sol brilha, uma nuvem se levanta e todos no mundo concordam que a força da menor das coisas existentes seria um ótimo fim pro maior conflito que eles mesmo já trouxeram a si mesmos. O calor atômico, entretando, jamais se equipararia ao calor do que eles sentiram naquele momento.

Ela abre a boca pela última vez.

- Isso parece que dura pra sempre. É como se eles estivessem abrindo os céus, chovendo algo a mais do que sempre choveu. Nunca termina, isso parece que dura pra sempre. É como ficar na fração de segundo de um acidente de carro. E Eddie... O tempo parece estar diminuíndo.

O brilho já ilumina o dia cinza, transformando-o em uma montanha de luz.

Ele a beija.

- Eu acho que eu só quero contar para ti, que a razão de eu não estar com medo, enquanto o nosso mundo se apaga, é tu. E enquanto os paraísos caem, não parece importar, porque a gente vai continuar junto se nós formos algo, afinal.


De mãos dadas, de almas atadas e corações leves. Como todas as perguntas que nunca tiveram resposta, isso parece que dura pra sempre.



Thomas Hanauer. 17/12/09