20120206

a última dança do planeta

Acordei tarde, sabendo que seria hoje. Olhei para o relógio, e ele parou. Me arrepiei, e sabia que esse era o sinal. Levantei e saí pela porta, deixando a jaqueta de lado, junto com as chaves do carro. Ela ficou aberta, não faz diferença. Crianças riam ao meu redor, jogando bola e correndo no sol, mães levando seus bebês para passear. Era uma cena linda, se não fosse a fumaça dos carros, as poucas árvores. Cinza, tudo cinza. Azul e cinza, céu e cidade, rachada, enferrujada, cansada. Acho que o mundo todo estava assim, mas isso iria mudar.

Só mais um dia normal, e sete bilhões de pessoas levando suas vidas. No outro lado do mundo, algumas dormem, envoltos em sonhos. Será que eles viam o que eu vi nos últimos sonhos? Será que eles saberão quando acontecer? Meus pés me levam pela calçada, enquanto vejo lixo pelas ruas, acidentes, gritos. Todo dia, e agora também. Nós, humanos, tão insociáveis, vivendo em sociedade. Não me espanto em ver o mundo chorando, as pilastras de tudo ruindo. No fim, somos nós os culpados de tudo, e ainda assim nos achamos invencíveis.

Será que ninguém reparava que todos os relógios estavam parados? Todos tão absortos em seguir sua vida, em chegar em casa, sentar no sofá e ir dormir tarde. Todos prisioneiros na própria liberdade. O sol parecia iluminar cada faceta das pessoas que eu nunca vi. Talvez eu fique por aqui, sentado no meio disso tudo, desse caos, dessa falta humana de humanidade.

Mil seiscentos e vinte segundos. E eu entro no grande prédio comunitário do centro. Eu sabia que era improvável, mas algo me dizia que todas as portas das escadarias até o terraço estariam abertas.

Por mais claro que o dia tivesse começado, eu sabia que não seria assim. As portas iam se abrindo uma a uma, lentamente levando meus pés até o topo. Eu ainda consigo ouvir a cidade por entre as paredes de concreto e vigas de aço, o eterno barulho do formigueiro que eram as cidades grandes.

Abri a porta final, e o sol subindo pelo leste banhou meu rosto. O cheiro seco do pó que cobria o topo do prédio rodopiou e entrou nas minhas narinas. Antenas cobriam o cenário e a lâmpada de aviso aos aviões estava desligada. Fui até a borda e sentei. Meu pai me contou que havia lido que o mundo não iria acabar com uma explosão e sim com um suspiro. E eu sabia que seria o caso. Quem mais saberia? Eu acho que algumas, mas não muitas. Talvez eu viesse a ver mais algumas em topos de prédios como eu.

Não com uma explosão, com um suspiro. A cidade respirava, sim. Eu ainda conseguia ver. Carros, ônibus, táxis. Pessoas esperando em sinais, alheias ao que acontece ao próximo, e às vezes a si mesmo. Mendigos nas esquinas, vendedores em barracas espalhadas pelo cenário. Tudo cinza e tudo minúsculo. Tão longe e tão perto de mim, aqui em cima, sentado sozinho esperando.

Eu sei que ainda tenho tempo, mas a espera é cansativa. Quando pequeno, eu pensava nesse dia. Será que haveria anjos? Fogo? Dor? Nunca fui religioso, mas talvez quando esse dia chegasse, eu mudaria. Só não esperava que chegasse tão cedo. Cedo o suficiente para me fazer sentar aqui e descansar os olhos na paisagem, e não nos anos que perdi em escolhas que não queria ter tomado, amargurado pelo desapontamento. Só me arrependo de não ter trazido algumas pessoas aqui. Vai ser difícil passar por isso sozinho, mas quem sabe no final, estejamos todos juntos. O destino hoje é um só.

Reparo no muro em que me apoio. Cinza, quente pelo sol. Rachaduras correm de lado à lado. Vejo uma escritura em caneta preta, um coração, duas letras dentro. Talvez isso fique aqui depois do fim. Talvez alguém tenha, afinal, eternizado algo em um muro em cima de um prédio perdido na selva de pedra.

Não ter medo, estar tudo bem. Quero terminar assim. Livre, envolvido em curiosidades e lembranças. Nada de medo. Não acho que alguém gostaria de desperdiçar sua última hora em medo. Eu passo as pernas pelo muro e largo meus sapatos no vazio. Rolando, rolando, rolando, sumindo da minha vista.

O céu está mais escuro. O vento mais forte balança meu cabelo. Meu óculos vai rolando pela amurada e também se perde no vazio. Parece uma grande tempestade se aproximando. O sol logo será coberto. O oeste inteiro já está cinza, escuro, com raios azuis e brancos e vermelhos cruzando o céu, se chocando e fazendo o ar vibrar. Todos os carros na rua estão parando. Acho que a nossa hora está terminando. As pessoas nas ruas começam a se mover mais rapidamente. Carros batendo, subindo calçadas. Será que finalmente olharam para seus relógios, e se deram conta de que não há mais tempo? Todos os pecados, todos os arrependimentos. Todas as cartas de amor não assinadas em fundos de gavetas, todos os dias perdidos, horas paradas. Isso tudo é confusão ou remorso? Talvez, eu acho, seja só compreensão. Acabou.

É a última dança do planeta. Gotas grossas de chuva começam a cair e o sol se foi. Todos os carros param e as luzes dos prédios se apagam. Todas as cabeças viram para cima. O silêncio é gigantesco. Até mesmo os raios pararam e o barulho da chuva é só um murmúrio. Abro os braços e abraço o fim do mundo.

A chuva arrepia meu corpo, e o mundo suspira. E o vento dá lugar à luz. Nem fria, nem quente, só luz. Ainda estou caindo e o fim está chegando.
Só mais dois segundos agora.



ut primitus in !

20110815

Instante

O sol da manhã entrava pelos vitrais da igreja. Era uma luz pálida, mas fria. Os bancos de madeira pareciam apagados. Havia muita gente ali, sentadas nos bancos, murmurando entre si, mas ela não via nenhuma. Para ela, seria melhor sem ninguém. Eram muitas vidas lamentando uma que se foi.

O mundo parecia etéreo, frágil. Uma máscara para uma realidade muito mais dura do que deveria ser. Faltava sono, sim, mas o que realmente incomodava era aquele vazio. Aquele nunca mais ver. O vácuo na boca do estômago, o aperto na garganta. Estava sentada na primeira fileira, mas poderia estar sentada numa ilha no meio do oceano. Não faria nenhuma diferença.

Estavam todos ali, mas ela mal os via. Sabia que estavam ali, e mais tarde ficaria muito agradecida pela força, mas agora era só ela. E era isso que assustava. Só ela e o mundo todo lá fora, e ele se foi, deixando-a sozinha para confrontar esses milhares de pensamentos que giravam com força dentro da cabeça, fazendo-a querer gritar e gritar e explodir em lágrimas para sempre.

As lágrimas já estavam lá, fazendo companhia. Eram velhas conhecidas, das horas de vigília, das noites insones, daqueles maiores medos. O sol não alcançava seu rosto, mas conseguia iluminar suas pernas. Naquela luz, ela conseguia ver as rachaduras pequenas no teto, a sensibilidade das suas mãos. Tudo se vê quando se lamenta a perda de alguém.

Sabia que suas filhas estavam ali. Sentia a mão delas na sua. Sentia aquele calor distante em seus lados, mas por enquanto, não importava. Logo iria começar e tão logo iria acabar. Como sempre haveria de ser.

As pessoas finalmente se sentaram e a canção começou. E enquanto a canção rolava, já não era mais aquela manhã fria na igreja. Era o começo. Era o conhecer, e ela sabia que se lembraria disso pra sempre. Ele estendia um vinil com aquela canção, do mesmo jeito que estenderia milhões de presentes depois daquele, mas aquele era o começo e aquele era o que importava agora. Sorrindo, sorrindo de um jeito que fazia seu coração dar pulos fortes no peito, que explodia borboletas no estômago mesmo agora, e queimava, queimava por dentro saber que não veria mais. Era uma fotografia tão nítida na cabeça, como se fosse ontem, como se fosse uma imaginação antes de dormir de algo que poderia acontecer amanhã.

E no mesmo instante, eram talvez dez anos depois. E a canção ainda era deles, e ela sabia que o CD que ele estendia para ela, do mesmo jeito de antes, estaria ali. Saberia que ele fora buscar com a sua filha, porque era necessário. Era deles, e deveria ser. Todo casamento, todo amor tem sua música. Embalava os momentos certos, era cantarolada entre abraços, se construía sonhos, e aquela era a trilha sonora.

O tempo brincava travesso. Eram quinze, dez anos atrás, dois segundos antes de atingir o chão, duas horas no futuro chorando ao chegar em casa, dez anos no futuro se lembrando com carinho.

A música tocava, e naquele instante, sem conseguir respirar ou articular qualquer palavra, sentindo a mão dele na pele do rosto dela, sorrindo, limpando as lágrimas, um amor que ninguém podia ver, mas como o vento, ela sentia. Era ele, forte, sorridente, a voz ressonando nos ouvidos cansados, como água fria quando se tem sede.

Era um presente, ela sabia. Estava cansada, e escolheu outra música qualquer, não aquela. Mas ela tocou do mesmo jeito. Era um adeus, um beijo de leve no canto da boca, aquele último abraço. Era a canção deles, e embalou aquela última dança. E quando a realidade e o tempo voltassem aos eixos, seguindo seu rumo, só restaria aquele calor formigando no rosto, aquele aperto. Mas havia mais luz naquele instante. Sem palavras por enquanto e as lágrimas lavando tudo embora, mas sim, mais luz ali com ela. Havia luz.


baseado no relato de dione boller, sobre o dia em que ele se foi.

20110616

(addendum I)

Voltar a escrever é como rever um velho amigo. Tu só realmente sente falta quando volta a vê-los. Depois que você se dá conta, tudo o que você quer fazer é passar horas com ele. Um livro é um velho amante, a escrita é um velho amigo. Tente viver sem algum dos dois depois de descobrir o vazio que fica.

Quase como pegar no sono. A magia está no momento em que se cruza o limite.



addenda ad ostium (perfecta)

20110615

a porta 19

O interruptor trancou de novo, mas o quarto não era mais o mesmo. Era mais simples, porém mais velho. A luz que se infiltrava era a mesma branca e fria, só que não trazia o cheiro e o barulho do mar. O chão estava longe do parapeito da janela, mas o quarto era de madeira mesmo assim.

Uma mesa, uma cadeira e talvez uma porta não encontrada. Em cima da mesa, só uma folha simples, pautada. Uma caneta preta, e talvez um cinzeiro de histórias não escritas. Ele sentia falta de todas elas. Quadros nas paredes. Fotos, cartas, inscrições. O sorriso dela no maior, congelado pra sempre naquela beleza. Mas nenhum era grande. A madeira tomava conta da maioria nua das paredes.

A cadeira rangeu por cima do chão de tábuas quando ele arrastou a cadeira para trás. Simples como o resto, mas infinitamente familiar. A caneta com tinta de todos os sentimentos estava parada, convidativa. O papel inclinado no ângulo conhecido. A espada e o escudo que ele sempre precisou para encarar qualquer turbilhão. E só de saber que alguns turbilhões poderiam derrubar todas as paredes de madeira e desestruturar definitivamente cada uma arduamente construída.

Seria fácil? Ele nem sabia, mas tudo começava assim. Uma dúvida, uma ideia, uma linha e um ponto. Às vezes isso era tudo que precisava para mudar as coisas.

Com um suspiro, ele levantou a caneta e encostou na página, sentindo todas as peças a sua volta caíndo ao seu desejo.

20101201

baby, babyluv

A luz da cozinha continuou apagada enquanto ela ia até a geladeira. O relógio da parede marcada 22h21. A única luz do aposento vinha da rua, dos postes amarelos. Não havia pressa em seus passos, pelo contrário. Ela queria fazer cada ação devagar para acelerar o tempo até que ele chegasse. A geladeira branca, cheia de recados em papel amarelo - o tipo de coisa que só ele faria - abriu gentilmente, iluminando o rosto dela com a luz suave e gelada. Ela estava usando uma camiseta dele, folgada nos ombros, arregaçada até o cotovelo. Uma calcinha branca, e só. O sorriso que ela logo iria vestir não seria para a geladeira. Seus cabelos escuros caiam pelo rosto. Ela havia dormido no momento em que desligou o telefone, calando as vozes por cabos por enquanto. Acordou sabendo que ele estava chegando, era só uma coisa daquelas milhares que eles compartilhavam: eles sempre sabiam, sempre sintonizados, sempre um só. Dentro da geladeira havia um copo vazio, com mais um recado. Ela reconheceria aquela caligrafia até no escuro. "Sabia que você ia esquecer de pegar um no armário.", ladeado por um coração pequeno. Ela sorriu, enchendo-o de água. Fechou a geladeira e apoiou as costas na porta gelada. Sentiu o ronco suave do motor nos dentes e a luz esbranquiçada passando pela cortina.

O carro subiu a pequena entrada, a luz lambendo as paredes da casa, se infiltrando pelo buraco da fechadura da porta da frente, no corredor ao lado da cozinha, indo se esconder na garagem. Ela continuou ali, no escuro. Escutou o motor zumbindo baixinho, uma fera ronronando, e conseguiu ouvir o clique da ignição, a porta abrindo e batendo e as chaves. Ele demorou alguns segundos para abrir a porta, e ela podia ver na sua mente ele tentando achar a chave certa, desatento e atrapalhado como sempre. O sons iam se aproximando, e ela fechou os olhos. Ela gostava de imaginar ele, e queria sentir o cheiro dele, o mesmo cheiro de todos os anos, antes de vê-lo. A pasta sendo atirada na sala de jantar, as chaves sendo penduradas na parede, os sapatos sendo tirados.

O cheiro chegou até ela como um sopro leve e quente ao pé do ouvido. Inspirou deliciada, nunca ficaria enjoada daquele cheiro. Quando abriu os olhos, ele estava ali, na frente dela, tão perto e tão rápido que ela só pôde sorrir. Sorrir aquele sorriso que vestia o rosto dela e foi o que fez aqueles olhos azuis dele se apaixonarem por ela. Ele estava só de jeans e camiseta. Sempre fora assim, odiava ter que trabalhar formalmente, achava que tirava a graça do trabalho. Ele sorria também, tão perto dela, como sempre. Pegou o copo da mão dela e o pôs no balcão atrás dela, já roubando um beijo no trajeto. As mãos dela subiram e foram se cruzar na nuca dele. As mãos dele se encaixaram no lugar do quadril dela que era dele por direito. A pele deles parecia se atrair, e quando ela percebeu, a camiseta dele já estava longe. Era elétrico. Ela sentia a eletricidade do contato entre as peles, passando pelos lábios que ainda estavam juntos, movimentando as mãos, ditando o ritmo da respiração. As mãos dele desceram mais, sentando-a no balcão, cruzando as pernas pela cintura dele, já sentindo o poder que ela sempre teve. A mão dele subiu, puxando o cabelo da nuca dela, mordiscando a orelha, procurando entrar na blusa.

Tão rápido quanto começou, ele parou e riu. Sempre assim, aquele crianção, parando pra rir e conversar nas horas mais impróprias, aleatório em sua maneira, que ela tanto amava. Ele olhou pra baixo e ela seguiu seus olhos. Abraçado na sua perna, na altura da coxa, estava o pequeno deles. Cabelos escuros como a da mãe, olhos azuis como o do pai. As bochechas abrindo aquele sorriso sem dente. Era o terror desde que começara a andar, e eles sabiam que o pior estava por vir. Riu alto, enchendo a cozinha com o som quando o pai o pegou no colo e o aninhou na curva do braço. Ela sorriu e sentiu que seu peito ia explodir quando ele beijou o rosto da criança. Era uma cena linda, de fato. Ele parado ali, só de calça, o bebê sorrindo abraçado no seu pescoço, a luz da rua descrevendo contornos impossíveis neles.

Com a mão direita, pegou na mão dela e a conduziu até a sala. A tela desligada espelhava a sala, mostrando dois grandes sofás macios, uma lareira abaixo do suporte da enorme televisão. Uma mesinha ficava na curva do L que os sofás formavam. Um tapete enorme cobria toda a parte a frente da lareira. Ao entrarem na sala, um sistema de luzes que ele mesmo havia montado acendeu todas as luzes indiretas do aposento. Luzes amareladas, suaves, se acenderam no teto e dois abajures altos do lado do sofá grande também. Sentou ali com o pequeno no colo e ela ao seu lado. Ela sorriu enquanto pegava uma toquinha verde do chão, colocando nele e arrumando as duas grandes orelhas. Conversaram sobre qualquer coisa. Muitas vezes ela perdia a atenção, só ficava olhando a boca dele se movendo, se deliciando com a curva suave do rosto e a barba que ele teimavam em deixar bem feita, um hábito que pegou por causa dela ao longo dos anos. Ele foi baixando o tom de voz, até um murmúrio baixo. No peito dele, com a cabeça na curva do pescoço, o pequeno já dormia. Ele sorriu e a beijou de leve diversas vezes, por todo o rosto. Ele e aquelas manias estranhas, que nunca iam embora. Ajeitou o pequeno e se aninhou no peito dela, aproveitando para roubar uma mordida de leve, aquele loiro sacana. Ela acariciou o cabelo dele, achando que já estava comprido demais. Os olhos dela pousaram na mesa dele, ali na sala mesmo, perto da aparelhagem de som ridiculamente grande dele. Via a folha de rosto de algo que poderia ser mais um romance. Ele não cansava de dizer que o maior incentivo havia sido ela, dedicando todos os 5 romances anteriores para ela. As compilações de contos só começaram a ter dedicatória depois que o pequeno nasceu, e vinha com as iniciais deles. Aquela dedicação nos detalhes era o que mais fascinava nele.

Fechou os olhos. O pequeno sorriu dormindo. Ele já adormecera também e logo começaria a babar na barriga dela, como sempre. As mãos dela continuaram afagando o cabelo, a mão dele se movendo para a coxa dela, arrepiando-a. A noite mal começara, e ela sabia que depois que ele acordasse, seria incontrolável. E ela amava isso.

Fechou os olhos e esperou. Tudo na mesma, babyluv.

estrelas

A chuva lá fora explodia suas milhares de gotas no teto. A lâmpada da rua estava apagada por de trás da cortina de água, deixando o quarto mais escuro do que nas noites normais. Os dois estavam deitados, ofegantes. Sem roupa, com um lençól branco leve delimitando os corpos. Mãos cruzadas, como sempre. Eles sabiam que era mais fácil romper o elo de uma corrente de titânio do que romper as mãos deles. Elas foram feitas pra isso. Ela se deliciava com a visão do teto do quarto dele. Ele havia instalado pequenos LEDs por toda a extensão dele, instalando um sistema de baixa tensão. O teto, quando ele acionava aquele botãozinho do lado da cama, se abria como o céu de verão. Cada LED era uma estrela. Fora o presente que ele deu para ela no aniversário de noivado na nova casa. Aquele nerd. Ele havia dito para ela que a distribuição das estrelas não era aleatória, e que havia uma mensagem ali. Que ela entenderia quando fosse a hora.

Ela apertou a mão dele, chegando mais perto. Ele respirava fundo enquanto virava para ela e apertava de leve as costelas dela. Como sempre. Ele sempre fazia ela rir depois do sexo, era uma marca registrada, assim como o beijo. Ela riu disso, e sorriu ainda mais, abrindo aquele sorriso lindo, fazendo o peito dele tremer de amor.

- Sabe, meu anjo, acho que teve algo que tu não percebeu.

A cabeça dele se inclinou no travesseiro, os olhos se curvando. Aquela carinha de confuso, como sempre. Os olhos dele se focaram nos dela. O milagre de olhos azuis dela.

- Ahm, se foi alguma data, amor, me desculpa, mesmo. Ando muito atarefado tendo que entregar os manuscritos, e...

O dedo dela se postou na boca dele, calando-o. Ah, como ele falava demais. Ela sorriu, sabendo que iria apelar para aquela mente assustadora dele.

- Que dia é hoje?

Ele olhou confuso, mas respondeu sem demora. Dia 2. De Setembro. Sorriu constrangido.

- Ah, desculpa, é dia 2, me fugiu completamente! - Virou-se rapidamente, abriu a gaveta. Voltou com um embrulho nas mãos. - Eu comprei semana passada, mas juro que me escapou hoje...

Ela sorriu. Não, não era isso, seu bobo. Puxou o cabelo para o lado, sorrindo. Ele tirou uma pequena corrente de ouro do embrulho, passando pelo pescoço dela. Um sabre de luz delicado, com a lâmina luminosa de pequenos diamentes cintilou ao ficar parada na dobra da clavícula. Ela sorriu. Ele não tinha cura, e sabia o valor que um símbolo daquele, de algo que fez tanto pra eles, valia tudo. Era o jeito dele, deixa pra lá, ela pensou. Ela amava ele assim.

- Bem, seu bobo, eu amei. Juro que nem esperava nada. Mas não, não é isso que você não notou.

Ele se deitou e olhou pras estrelas que eram só deles. Parecia ler a mensagem, ela sabia que ele lia. Será que aquela mensagem era só para ela? Ou para eles? Ele olhou de volta pra ela enquanto um relâmpago cortava a rua la fora. Na luz que entrou no quarto, ela viu os olhos dele se arregalando de compreensão, parecendo absorver toda a eletricidade daquele raio. A pele dele arrepiou na hora, de cima a baixo. Ela empalideceu e respirou fundo.

- É dia 2 e nós estamos na cama.

- Certo...

- É dia 2 e nós estamos na cama e não tem sangue aqui.

Ela sorriu e não disse mais nada. Ele avançou até ela, se levantou da cama, a levando junto com muita facilidade, levantando-a e a encaixando nos seu quadril. Ela o via de cima agora, e ele estava tremendo bem de leve, e ela só conseguia sorrir. O colar refletia a luz branca. - É sério? Nós vamos... Nós vamos ter o nosso pequeno?

- Sim, meu amor, nós vamos ter o nosso pequeno.

- Eu amo você, eu amo você. Eu tenho algo pra te mostrar!

Ela riu alto quando ele atirou o corpo dela de volta na cama. Sentou-se na porta, pegou a mão dela e encostou no peito dele. O coração dele explodia, firme, forte, constante. Fechou os olhos, ela fechou também. A mão dele conduziu a dela até a parte de cima da cabeceira da cama. Havia algo ali que ela nunca havia reparado, uma pequena entrada na madeira. Puxou e uma pequena caixinha se abriu. E havia um botão. Ele forçou o dedo dela contra o botão.

Um relâmpago iluminou todo o quarto quando ela abriu os olhos. Ele olhava para ela do mesmo jeito que olhou na primeira vez, sentado sozinho em um banco de colégio. Quando a luz se foi e os olhos dela se acostumaram com a luz, ela percebeu que algumas estrelas haviam sumido. As que sobravam formavam um círculo duplo, com uma seta no meio. A seta apontava para o mesmo botão que ela havia pressionado. Ela se levantou e olhou para a caixinha de madeira. Os olhos dele estavam fixados em algum lugar abaixo da linha de visão dela. Mas ela viu.

- Tu sempre esteve lá, meu amor. Quer ser minha pra sempre?

As palavras dele encheram o quarto. Um anel branco, com uma faixa fina ouro estava ali, encaixada em volta do botão. Uma vida pela frente, e um anel para provar.

20101101

Pesadelos da Nossa Carne, II

Capítulo #2


A rua de Devin se extendia do extremo leste do bairro até se dividir perto do final oeste. Começava no mar e terminava em duas grandes empresas, uma de motores para carros e outra de fretes com caminhões. O vento soprava constantemente por ela, e a brisa vinha salgada. Na metade do caminho do mar até a intersecção para as grandes empresas da parte oeste, havia a rótula que levava até o túnel sul que ia em direção ao bairro central. À partir desse ponto, o espaçamento dos prédios e casas ia aumentando, dando espaço para as árvores e praças. O túnel passava por baixo do rio Satr que seguia em direção ao centro do estado, enquanto o túnel ia para o bairro central. O prédio de Devin, o Solar, ficava há 4 quadras da rua do túnel.

Devin saiu pelos cacos da porta de vidro, pela lateral do carro patrulha. A fumaça era soprada em direção ao sol. Subiu no capô de um carro que havia engavetado com o carro patrulha e olhou em volta.

Até onde podia ver, havia carros batidos. Podia ver um carro do corpo de bombeiros tombado trancando completamente a via atrás dele, impedindo que a fumaça na frente do seu prédio se dissipasse, mal sabendo que a falta de vento para carregar o seu cheiro simplificou seu dia. Mais adiante, em uma trilha de sulcos no concreto, estava os restos do helicóptero, uma hélice apontando para o sol como um dedo acusador. Havia sangue nela. Algo pendurado que pareceu muito com um resto de intestino dava volta na hélice que estava à direita e ia em direção ao chão, atrás de um carro parcialmente amassado. A farmácia estava ali, há dez metros dele. Até onde ele conseguia enchergar, não via nenhuma daquelas criaturas. Empunhou a escopeta, uma Remington 870, segundo a inscrição. Subiu e desceu com a telha por todo o cano, ouvindo o clique do cartucho entrando em posição. Cinco balas no corpo, mas 10 nas caixas que pesava dentro do casaco. Teriam que servir. Tragou o cigarro enquanto descia até a rua, contornando um carro cujo aparelho de som ainda cantava.

Chutou uma latinha de refrigerante que foi quicando e ecoando por toda a área. O vento pareceu se calar somente para a latinha ter sua vez de fazer barulho. Uma cabeça levantou de trás do capô do carro amassado, o intestino que descia pela hélice em sua boca ensanguentada, os olhos ainda com um pouco de cor.

(you will be...)

Um grito agudo saiu da criança que ele havia visto ser mastigada viva da janela do seu quarto. Sua barriga estava aberta, revelando a coluna pequena e algo que parecia com um fígado pendurado em uma das costelas finas.

(...the death of me...)

Ela se atirou pra cima do capô enquanto Devin dava um passo pra trás levantando a mira da escopeta.

(...yeah, you will be...)

Era só uma criança, mas foda-se, aquilo era sábado à tarde.

(...the death of me)

A explosão da escopeta fez os braços de Devin voarem pra cima, enquanto pedaços da cabeça da criança voavam em todas as direções possíveis, formando uma nuvem de sangue e ossos. Os tiros secundários abriram rombos na lataria do carro, por onde aquele sangue espesso que parecia encher aquelas criaturas escoava pelo capô azul e se infiltrava nos furos. O barulho do disparo pareceu rolar e rolar e rolar. Devin olhou para a rua e viu talvez 10 cabeças viradas pra ele. Todos eles estavam no sol, e seus olhos eram daquele branco opaco e vazio, a pele caíndo em volta do corpo como se a fumaça e o calor estivessem cozinhando-os. Dentes se arregalaram em dúvida, mostrando aquele rubro líquido. Devin sentiu o sangue gelar por inteiro quando uma brisa passou por seu cabelo em direção às criaturas. Clique. Claque.

Quatro dos mais próximos viraram para o som da arma sendo engatilhada, e ao sentir o cheiro da brisa, dispararam em direção à Devin, que saiu correndo em direção à farmácia, torcendo para que a porta estivesse aberta. O cigarro dele saiu voando. O que estava há somente dez metros de Devin pisou em um boeiro que havia sido parcialmente destampado pela queda do helicóptero fraturou a perna com um barulho que pareceu tão horrível quanto à cabeça da criança explodindo. Não pareceu o afetar, no entanto. Continuou se arrastando com o que restou da perna. Os outros passaram por ele. Devin esperou que pelo menos três dele se alinhassem pra correr e disparou mais uma vez, dessa vez abrindo um rombo imenso no ventre da primeira criatura, e danificando seriamente o peito das duas atrás. O sangue pintou o chão e Devin assistiu maravilhado enquanto um braço dava piruetas perfeitas no ar e caía dentro do boeiro.

- Cesta! - ele gritou no êxtase daquela loucura, carregando a arma mais uma vez e chutando a porta da farmácia. - Porra, porra, porra! - Havia mais duas criaturas dentro da farmácia abafada e escura. Os olhos delas seguiram Devin atravessando o corredor central, e logo partiram para cima dele. Devin estava num espaço pequeno, não podia atirar com a escopeta sem ter chance de se acertar com algum fragmento. Quando a primeira chegou perto, Devin virou a arma em um arco e acertou-lhe o queixo com a coronha da escopeta, arrancando a mandíbula e esmigalhando os dentes da criatura. Notou, momentaneamente, que os olhos das criaturas ali no escuro estavam normais e suas peles só estavam pálidas e sujas de sangue, não avermelhadas. Enquanto a primeira criatura caía pra trás, a segunda já estava muito perto, e no reflexo, Devin atirou a escopeta no peito dela, indo para a pistola no seu coldre em seguida. A alça da mira ficou presa no casaco, e enquanto Devin tentava se desvencilhar, a duas criaturas já estavam de pé.

- A gente não pode tentar manter um diálogo?

As duas criaturas se atiraram para cima dele. Devin conseguiu retirar a pistola do coldre, destravou-a mas já era tarde, as duas estavam em cima dele. O mundo ficou escuro com o peso delas tirando o ar de seus pulmões, mas Devin viu a chance de acertar uma delas. - Engole... - Encostou a arma no queixo da segunda criatura. - ...isso. - Atirou e os pedaços do cérebro da criatura foram pintar o teto. Enquanto tentava se desvenciliar do primeiro zumbi, começou a rir desvairadamente ao perceber que ele tentava lhe morder com o que restou da boca, fazendo pressão na correia dura de couro da arma em seu peito. - Foi mal, parceiro. - O som do tiro encheu a farmácia.

Devin levantou-se e olhou ao redor. Uma das criaturas estava com um jaleco branco, possivelmente trabalhava ali na farmácia, o outro parecia um cliente. Continuou olhando e não notou mais nada, por enquanto. Com a arma em punho, foi lentamente se movendo. Parou, Alçou a escopeta e a pôs em volta do ombro, apoiando-a na mochila às suas costas. As luzes estavam apagadas ali dentro, e o sistema de circulação de ar também. A luz do final do dia se filtrava pelas janelas, e de vez em quando ele via uma daquelas coisas passar correndo, mas não viu nenhuma pessoa. Continuou andando e chegou até o balcão, onde encontrou outro funcionário da farmácia. Ele havia sido mastigado até os ombros, nos dois braços, e uma perna inteira havia sido dilacerada. Seu estômago brotava do abdômen e espalhava sangue por tudo. O crânio parecia afundado nas laterias, como se algo tivesse apertado sua cabeça até sua morte. Não parecia se mexer. Devin cutucou-o com o pé. Nada.

- Vocês são zumbis, não são? E olha eu aqui conversando com um.

Achou a portinha dos fundos que dava para um pequeno depósito de suprimentos e medicamentos. Cautelosamente, andou e espiou pelas estantes. Nada. Localizou duas portas no final do depósito. Uma era um banheiro, a outra era uma porta que dava para um beco no meio da quadra. Espiou e viu uma daquelas criaturas mastigando o que parecia ser um cachorro. Devin registrou essa informação enquanto fazia mira com a pistola. Ele saíria por aquele beco amanhã, e era melhor assim. Quando a pistola se alinhou com o cocoruto da cabeça do zumbi, Devin atirou. O escalpo deu voltas no ar enquanto o zumbi caía estrebuchando no chão. Entrou e fechou aporta, empurrando uma estante para a trancar por ora. Voltou até a área principal e começou a dar um pouco de segurança ao local, teria que passar a noite ali. Devin supos que a luz tinha algo a ver com os olhos das criaturas e não seria legal estar lá fora com elas além de tudo, enchergando. Arrancou uma prateleira e atravessou nos puxadores da porta, abaixando as grades em seguida. A escuridão ali parecia comprimir suas retinas. Foi até os fundos e achou um balde de aço, pegou algumas gazes e tocou dentro do balde, procurou alcool e atirou por cima. Quando a sua lâmpada improvisada queimava, começou a arrastar os dois cadáveres para trás do balcão, junto com o terceiro. Pegou algumas folhas de um jornal velho e espalhou por cima, vendo as notícias dos dias anteriores ficando vermelhas. Olhou em cima do balcão e achou um celular, e não se surpreendendo ao perceber que não havia nenhuma barra de sinal na tela. O telefone fixo também estava mudo. Olhou em volta. Pegou quatro ou cinco pacotes de aspirina, usou a chave que estava no bolso do cadáver do balcão para abrir uma pequena grave em volta dos remédios mais sérios e pegou penicilina. Achou uma pequena bolsa e colocou tudo ali dentro, pegou mais algumas gazes, esparadrapos e pôs tudo na mochila. Nunca se sabia.

Enquanto Devin empacotava a mochila e a colocava num canto do depósito, a noite caia.


24 horas desde que a infecção havia explodido no distrito militar da área rural de Ire. O governo havia enviado tropas por toda a Ire para tentar contar a infecção, que saiu de controle aproximadamente 18 horas após o primeiro contágio. As tropas haviam sofrido baixas de aproximadamente 96%, enquanto o número de pessoas não-infectadas de toda a população era de apenas 2%. Desses 2%, somente um inviduo era geneticamente imune ao vírus.


Devin passou a noite toda acordado, abraçado na escopeta. O som era aterrorizador. Eles pareciam muito mais ativos à noite, mais conscientes dos arredores. Havia 5 ou 6 parados nas janelas, sem se mover, as mãos nos vidros, babando aquele sangue espesso como em antecipação à carne quente de Devin. Batidas secas vinham da porta que dava para o beco, e algo pequeno se arrastava correndo pelas tubulações de ar. Devin olhou para o relógio em cima do balcão, tiquetaqueando algo próximo das seis horas da manhã. Levantou-se e foi até os zumbis parados nas janelas. Eles não embassavam o vidro, mesmo colados neles. Arreganharam os dentes e começaram a forçar o vidro. Devin estacou ao ver uma mulher passando correndo pela frente do prédio e mais dois zumbis correndo atrás dela. Desviou o olhar quando ela tropeçou, e os sons de mastigação entrecortados pelos gritos chegou até ele. Aquilo era o inferno, e Devin estava vivo nele.

Tirou a pistola do coldre, e verificou o pente. 8 balas ainda. Engatilhou uma, recuou o cão da arma até ouví-la travando. Encostou a saída do cano no vidro em frente a testa de um dos zumbis, por entre as grades.

- Como será que deve ser aí dentro? - Olhou naqueles olhos enquanto recuava um pouco a pistola e apertava o gatilho. O vidro era anti-estilhaços, e pelo buraco que a bala viu Devin pode ver a cabeça do zumbi sendo atirada para trás enquanto caia. Os outros começaram a bater firme no vidro. Devin encostou a pistola novamente e mais uma cabeça foi jogada para trás. Quatro zumbis se juntaram perto dos dois furos. Devin foi até a prateleira, pegou uma lata de desodorante. O balde estava próximo. Devin empurrou o balde para perto do vidro, apontou os dois aerosóis e a ignição foi instantânea. Os dois furos no vidro funcionaram quase como maçaricos, fazendo a carne podre queimar, logo se alastrando para as roupas. Enquanto o fogo consumia duas delas, as outras continuavam atacando o vidro. Em poucos segundos, todos estavam queimando. O dia fora seco, e a fumaça e o calor do fogo durante o dia havia feito as roupas e até mesmo a pele dos zumbis secarem. A gordura exposta pelos ferimentos inflamaram e logo os quatro estavam queimando. Quanto mais queimavam, mais violentos ficavam, atacando o vidro. Pedaços agora caiam para dentro, Devin recuou e largou os frascos no chão, correndo para pegar a escopeta enquanto colocava a arma de qualquer jeito no colde. Os zumbis em chamas agora começavam a se atirar contra os restos de vidro e as grades, largando pedaços pelo chão. Devin viu de relance um mordendo o braço do outro para tentar chegar mais perto. Alcançou a escopeta, se virou e engatilhou. Um dos zumbis estava perto do chão, e seu braço acertou o balde. Quase em câmera lenta, ele virou para a direita, espalhando gaze e alcool por todo o chão. A prateleira com mais desodorantes e álcool foi lambida pelas chamas. Devin se virou, alçou a sua mochila com um braço enquanto corria para dentro do depósito. Uma pequena explosão tremeu a farmácia quando o fogo conseguiu chegar nas garrafas.

Xingando alto, Devin correu até o fundo e empurrou o armário para o lado, deixando a porta livre. Batidas ali também. Olhou para a porta do depósito onde o fogo já lambia a porta. Olhou em volta e localizou uma vassoura. Apoiou a escopeta no quadril e escitou a vassoura, empurrando a maçaneta. Dois zumbis foram lançados em pedaços pela porta ao tentarem entrar. O cano da escopeta subiu, mas Devin conseguiu soltar a vassoura e firmá-la à tempo. Engatilhou novamente e saiu no beco. As suas costas havia uma grande grade de ventilação, e o céu já apresentava uma claridade suave vindo do leste. O zumbi que Devin havia atirado mais cedo continuava deitado, sendo empurrado. Uma sombra de zumbis se movia até Devin com os olhos brilhantes, cheios de fome, vazios de consciência. Devin subiu a escopeta até o ombro, a firmou e o tiro foi um ponto final na primeira noite dos infectados. Um dos zumbis ainda se arrastava desesperadamente em direção a ele, sendo finalizado por um chute que partiu-lhe o crânio em dois.

O único som agora era coisas estourando com o calor dentro da farmácia. Devin já podia ver a luz do fogo na parte mais alta do seu prédio. Ao longe, ouviu disparos secos, em rajada. Supos que seriam rifles e torceu que fossem militares. Algo que parecia o som das hélices de um helicóptero foi silenciado pelo crocitar de corvos.

- Diabo de dia. - Devin arrumou a mochila nos ombros. Pegou a correia da escopeta, passou em torno do braço e sacou a pistola. - Merda, isso aqui nem tava travado, eu podia ter arrancado um pedaço de mim e nem ia saber de onde veio. - Com a pistola a frente, começou a se movimentar cautelosamente por cima dos cadáver. As mandíbulas ainda se moviam, Devin notou. Aparentemente essas coisas podiam viver sem o corpo desde que a cabeça ficasse intacta. Aqueles olhos estavam quase normais, mas mais adianta havia outra cabeça com os olhos opacos. Passou por elas e seguiu em direção à segunda avenida da cidade.

Ela começava no extremo sul da cidade e se estendia até o Satr. A terceira avenida de Ire ficava há duas quadras oeste dali. A rua do túnel há quatro. A segunda avenida estava bloqueada por um atruncamento de carros. Seu fluxo seguia em direção ao Satr, enquanto a terceira ia de encontro à via principal, a rua de Devin. Ele via fumaça se esguendo na direção do rio, ouvia mais tiros na direção do túnel também, seguida de uma explosão cega de algo que parecia com uma granada. Na falta de escolhas, sem poder descer até o rio pela segunda, Devin teria que cruzar a rua e seguir até a terceira pela principal.

Com a arma em punho, Devin encostou-se na parede do beco.

- Eu não devia ter perdido o controle, eu não devia ter atirado nelas, mas que merda. Agora eu tô aqui, no meio de uma cidade infestada dessas coisas zumbis, com uma porra de uma pistola na mão e o dia nem sequer amanheceu. - Virou-se em direção ao beco e seguiu em frente. Atrás do entruncamento a rua estava bem vazia. Provavelmente as pessoas ao notarem que a avenida estava trancada e resolveram seguir pela principal quando o surto começou. Provavelmente houvera transmissões em televisores e rádios, isso sempre acontecia. Agora a cidade estava morta, sem energia. Devin chegou até uma banca daquelas que ficam na calçada, e com cuidado espiou os jornais. Sem edição extra. Certamente não houve tempo de escrever nada. A coisa estava muito séria. Entrou com cuidado dentro da banca de metal, se sobressaltando com o lojista esparramado entre a cadeira e o balcão. Seu rosto havia sido mastigado, e Devin se perguntou porque ele não havia virado uma daquelas criaturas. Sempre haveria a chance de algumas pessoas serem imunes, mas para garantir, Devin encostou o pé da cadeira que o balconista usava na têmpora e fez pressão com o pé. Os olhos dele saltaram e se misturaram com o sangue e pedaços brancos que Devin reconheceu como um cérebro com o barulho seco do osso. Abaixou a cobertura de metal, acendeu um cigarro e esperou.

20101025

Pesadelos da Nossa Carne, I

PARTE I: O SURTO NO OESTE


Capítulo #1


Quando Devin pulou de sua cama, o dia já se arrastava até a tarde, mas ele não teve tempo de conferir. Sirenes gritavam pela cidade. O cheiro de fumaça enchia o quarto no quinto andar. Algo não podia estar certo, mas as batidas eram fortes demais para que ele reparasse nessas coisas.

Levantou-se correndo com as batidas na porta, calçou uma bermuda jeans que estava por perto, uma camiseta folgada e foi correndo até a sala.

- Já vai, já vai! - A sala estava suja e desarrumada, a empregada não havia vindo pela manhã. As batidas continuavam. Eram descompassadas, quase como se algo estivesse se apoiando na porta. Os restos da sua janta solitária estavam ali, junto com as garrafas que agora cobravam o preço com cada batida na porta ecoando em sua cabeça.

Devin chegou em frente a porta, tentando cobrir o sol que entrava pela janela, permeado pela fumaça, que refletia nos vidros em cima da mesa. As batidas continuavam, e um gorgolejo baixo acompanhava cada investida. - Tá tudo bem aí fora? - Devin destrancou a porta, abaixou a maçaneta.

Algo pesado investiu contra a porta e finalmente a abriu, levando Devin de encontro a mesa, onde derrubou as garrafas. A pessoa ali parada, ou o que sobrou dela, ficou um segundo em dúvida e então, cambaleando, se atirou em cima de Devin. Seu reflexo foi de tentar amparar a queda, até ver a camiseta em frangalhos da coisa, com manchas enormes de sangue. Seu corpo rolou para trás, sentindo o vidro cortando seus braços, sentindo o grunido da coisa perto de sua ouvida direita. Conseguiu se levantar.

A coisa no chão devia ter um metro e setenta, e definitivamente já fora um humano. O cabelo loiro desgrenhado cobria só metade do crânio. O outro lado ostentava um brilho branco enevoado em tufos de cabelo e sangue com ferimentos que pareciam mordidas de algum animal. Seus dedos se contorciam em garras, e ele notou que havia algumas unhas faltando. As outras estavam cheias de sangue. A camiseta branca, social, como ele já havia reparado antes, estava suja de sangue, o colarinho rasgado revelando o peito ensanguentado. Os olhos que se viraram pra se fixar em Devin eram de um branco opaco, vazio.

- Acho que algo pode não estar certo aqui. - Seus olhos se arregalavam e tatearam até a mesa procurando um apoio e tocaram na ponta de uma garrafa que havia caído. A criatura se levantou com um ofego e se atirou em direção a Devin com uma velocidade supreendente. Seu único reflexo foi de formar um arco com seu braço e acertou a cabeça da criatura em cheio na têmpora direita. O estouro da garrafa ecoou pela sala, e a criatura cambaleou até a parede. - Acho que isso resolve nossos problemas, garotão.

Mal terminou a frase, o que restou pendendo da garrafa já pendia levemente do seu lado, quando a criatura avançou novamente. A violência do golpe havia arrancado um olho, que pendia preso por pequenos fios de nervos, mas não sangrava. Uma camada expessa de sangue marrom, por sua vez, pareceu encher a cavidade agora vazia. O som da garganta gorgolejava, e Devin foi derrubado enquanto cruzava as mãos acima do peito da criatura. A força foi suficiente pra tirar o ar de seus pulmões, e de perto ele pode ver pedaços de carne pendendo dos dentes amarelados pela nicotina. O cheiro era insuportável de tão perto. Os dentes se fecharam em um estalido perto do rosto de Devin, e demoraram alguns segundos até ele reparar na garrafa ainda presa em sua mão direta, com as lascas de vidro apontadas direto para a cabeça da criatura. - Ah, seu saco de bosta! - Com um movimento rápido, os cacos de vidro penetraram facilmente o lado esquerdo do rosto. O golpe não foi forte o suficiente, porém o outro olho da criatura se soltou com um estalido úmido, e ele pode ver o brilho do vidro por trás dos nervos cortados. Parecia que ele já estava se decompondo, e a idéia deixou Devin com nojo. As mãos da criatura agora arranhavam o chão em volta dele, e a boca mordia às cegas. Aparentemente, seja lá o que estivesse em cima dele, dependia também da visão.

Devin pôs toda a sua força em um movimento ascendente de seu quadril, jogando a criatura para o lado, arrancando a garrafa de sua mão. Atingiu o chão a menos de 40 cm do rosto de Devin, e o som do vidro atravessando a cabeça e quebrando ali dentro foi nauseante. Um último grunido passou pela garganta da criatura, e o corpo relaxou. Devin levantou-se limpando os pedaços de vidro e comida que haviam em si, sentindo-se atordoado. O que diabos havia sido aquilo? Do corredor do prédio, um grito agudo subiu. Ele correu até a porta e a trancou. Algo passou correndo pela frente da porta recém trancada e Devin recuou dois passos. Um grito subiu da sua própria garganta quando seu calcanhar tocou o cadáver no chão.

Praguejou baixinho enquanto se virava. O cadáver continuava lá, imóvel. Seu primeiro pensamento foi de deixá-lo ali, mas e se ele voltasse? Olhou em volta e localizou um pequeno cordão de varal. Teria que servir. Pegou-o e com muita cautela, amarrou as mãos da criatura no pé da mesa. Amarrou também seus pés, lembrando da velocidade com que ele havia avançado. O que seria aquilo? O quarto de Devin era povoado de revistas e livros sobre mortos-vivos, mas aquilo era o mundo real, aquilo era bobagem. Procurou em volta e localizou seu celular em cima do sofá. Enquanto discava para a emergência, foi até a janela.

A fumaça se erguia por toda a cidade. O sinal de ocupado no celular não foi nenhuma surpresa para Devin, que contemplava o caos que havia se instalado nas ruas. Havia sangue, muito sangue. Carros se entruncavam, focos de incêncio se espalhavam. Lá de cima ele conseguia ver pessoas correndo em desespero. Algumas, pela aparência e o modo curvado com que corriam, não eram exatamente mais pessoas. Gritos. Sirenes. Ele viu uma garotinha de uns cinco ou seis anos ser destripada por uma daquelas coisas, enquanto a sua mãe batia inutilmente em outra com sua bolsa, gritando em tons que ele não sabia que uma garganta conseguiria produzir. Um grupo de cinco ou seis pessoas se amontoava em volta de uma criatura que estava prensada por um carro em uma parede de concreto. Acertando-lhe com barras de ferro, não repararam nas dezenas de criaturas que vinham correndo, pulando carros e se movimentando insanamente para cima deles. Eram rápidos, os desgraçados. Um helicóptero passou voando rápido em frente ao prédio. Devin não teve tempo de se perguntar o que um helicóptero fazia voando perto do quinto andar quando viu um tripulante se atirar, enquanto o helicóptero ia de encontro ao chão. Não explodiu, mas as impiedosas pás serraram o que quer que estivesse no caminho. Uma nuvem de sangue ficou para trás do caminho do helicóptero, e pedaços de carne se misturavam aqui e ali com o concreto. A visão fez Devin ter ânsias.

O fluxo parecia levar todos em direção ao norte, indo para o centro da cidade. O helicóptero também parecia se mover naquela direção. Ao virar-se, ouviu novamente aquele grito agudo, só que dessa vez veio do apartamento em cima do dele. Virou para a janela, e o som de vidro quebrando pareceu estar dentro da sua própria cabeça. A chuva prateada de cacos de vidro mergulhou em direção ao asfalto. Ele viu rapidamente uma mulher, provavelmente aquela bela moça do 201 que sempre lhe sorria pela manhã, sendo atirada por mais uma daquelas criaturas, dessa vez uma moça negra, sem um braço e uma parte da calça arrancada, mostrando uma panturrilha roída até o osso. Sangue, muito sangue.

Os olhos da moça do 201 se encontraram com os de Devin, o desespero dos dele, o alívio de acertar o chão dela. E esse foi o epitáfio da moça do 201. Alívio em acertar o chão com uma criatura toda mastigada acertando-a por cima. Devin ficou alguns segundos observando a criatura se levantar e seguir correndo, mancando na perna em frangalhos enquanto deixava a moça lá, com a perna em um ângulo que ninguém gostaria de ter pra si.



Enquanto arrastava o cadáver até o banheiro e o trancava ali, amontoado entre a pia e o vaso, Devin teve tempo de pensar um pouco. Essencialmente, o apocalipse chegara em uma manhã de sábado onde tudo o que ele queria era aproveitar a sua ressaca até que a noite encobrisse seu quarto e ele pudesse se enfurnar em sites obscuros até o nascer do sol de domingo. Um dia normal, como qualquer outro. Um dia onde ele teria que pensar no que iria falar pra Johanna quando atravessasse a cidade no domingo pra tentar acertar as coisas.

No seu quarto, pôs uma jeans comprida, calçou seus coturnos e colocou uma camiseta leve. Armou sua mochila com um casaco, uma lanterna sem pilhas que achou dentro de uma gaveta. Pegou também a pistola que seu pai havia lhe dado quando ele havia resolvido morar sozinho. Tempos complicados, dizia ele. Devin esperava que ele estivesse bem em sua casa na costa, cem quilometros norte dali. Ela estava dentro de uma caixa de sapatos, tampada por algumas meias velhas. Era uma pistola UK USP. Uma ótima arma, e nunca havia lhe deixado na mão quando atirava com o pais nos grandes campos das fazendas que ele tinha no centro do país. Um pouco mais abaixo, havia duas caixas de cartuchos, todos carregados. Não havia mais do que quarenta balas nas caixas, mais treze balas na arma. Deveria bastar. Travou-a e pensou em pô-la na mochila, mas então lembrou-se da moça do 201. Deuses, a idéia de Johanna no outro lado da cidade estava começando a deixá-lo muito nervoso. Falou para si mesmo que estava tudo bem, que os militares estavam cuidando de tudo. E o militar pulando pra fora do helicóptero estaria cuidando?

Pegou suas coisas e foi até a sala, parando por alguns segundos em frente à porta do banheiro para ouvir se havia algo se mexendo. Aparentemente não. Antes de sair, revirou as gavetas do lado da porta e achou o velho e surrado coldre de peito de seu pai. Atrelaçou em volta de si, verificou o pente da pistola, pôs uma bala na agulha, destravou-a e parou em frente à porta.

- Lá vamos nós, seja lá quem ainda possa ser chamado de 'nós'.

Com a arma na mão direita, usou a esquerda para destrancar a porta. A empurrou, e o silêncio do corredor pareceu muito denso. Olhou para o chão e notou um dos cacos de vidro, e o chutou até o meio do corredor. Nada. Resolveu por precaução chutar um dos pedaços que continha sangue, e ele quicou e parou um pouco adiante do primeiro. Um gorgolejo e o som de passos vacilantes acompanharam aquela sombra ensanguentada em direção ao sangue. - Cheque-mate. - A pistola gritou e a bala atravessou o peito da criatura deixando nada mais do que um pequeno furo no peito. O impacto empurrou a criatura um passo atrás, e ela continuou avançando. Ele começou a tremer, sabendo que não deveria descarregar a pistola inteira na criatura, seria muita falta de estratégia. A imagem dos cacos de vidro empurrando o olho da primeira criatura fazendo-a tombar relampeou na sua mente enquanto ele ajustava a inclinação da arma em direção à cabeça da criatura. Outro grito e um ponto apareceu entre os olhos. Devin abaixou a arma, o brilho do disparo ainda cravado em suas retinas. A fumaça subia do cano ao seu lado e a criatura estava caída.

- "Não esqueça: mire na cabeça", é.

Avançou com cuidado, observando a porta de incêncio a sua direita. Foi até o cadáver, cutucou-lhe com o pé. Ao fundo do corredor, uma mulher atirada contra a parede, suas vísceras se desenrrolando em direção às paredes, marcas de mordida em todo o corpo e aquele olhar vazio. Foi até o elevador, apertou o botão e nada, as luzes haviam sido cortadas. A escada de incêndio lhe pareceu muito assustadora agora. - Merda de dia ruim. Nunca consigo arrumar minhas merdas em um sábado. - Com a pistola empunhada, se moveu devagar até a escada. Um grito inumano irrompeu atrás dele, e seu sangue gelou enquanto ele lembrou daquela teia de intestinos sangrentos. Se virou e começou a rir. A mulher, ou o que um dia fora uma mulher, mexia a cabeça ferozmente, mas não conseguia se mover. O ângulo dela era estranho, possivelmente tivera quebrado a coluna ao ser atirada contra a parede. O riso de Devin se tornou nervoso, quase histérico, ao perceber que Johanna podia estar assim. Olhou em volta, localizou um extintor de incêndio e foi perto da criatura. - Nada pessoal, madame. - O som do crânio sendo esmigalhado ecoou no corredor pequeno. Se virou e voltou até a porta.

Havia dois anos que ele se mudara para aquele prédio ao sul do centro da cidade de Ire. Uma cidade litorânea de aproximadamente trezentos mil habitantes, onde um deles tentava desesperadamente sair daquele prédio e ir atrás de uma pessoa no lado oposto da cidade. O seu bairro era o segundo maior dos três que havia na cidade. Para chegar ao centro-norte da cidade, atravessando o rio que dividia a cidade, era necessário passar pelo túnel sul e seguir em direção ao bairro norte através do centro e encontrar Johanna, supondo que ela estivesse lá. Supondo que ela estivesse viva.

As luzes de emergência há muito estavam sem carga, e ele se perguntou a que horas aquilo tudo havia acontecido e quão forte estava o seu porre para ele não perceber antes. Empurrou com a mão a porta pesada, mantendo a arma em punho. Nada. Abriu a segunda porta em direção às escadas. Havia sangue gotejando de algum lugar lá em cima, e barulhos por todo o prédio, mas nada que oferecesse risco imediato. Colou as costas na parede, sentindo o macio da mochila contra suas costs, agora percebendo que precisava encher ela com coisas logo, antes que a necessidade chegasse. Precisava parar na farmácia na rua defronte ao seu prédio.

Continuou se movendo costeando a parede, mantendo a arma apontada reto para baixo, mas sempre olhando por onde já veio. Descendo a gravidade sempre ajuda. Todas as portas estavam fechadas até o terceiro andar, onde um braço se estirava deixando-a semiaberta. Devin se virou para a porta e começou a passar quando ouviu o som de algo batendo no corrimão alguns andares acima dele. Correu para a parede em tempo de ver mais uma daquelas criaturas caíndo pelo vão da escada, deixando pedaços e sangue pelo caminho, seguido por mais uma outra que ardia em chamas da cintura pra cima. O som de ossos quebrando e carne se espalhando percorreu toda a escadaria e pareceu ecoar lá em cima. Agora a fumaça subia por ali também. Colocando a cautela de lado e deixando o medo afrouxar as coleiras, Devin começou a descer a escada de dois em dois degraus, sabendo que a qualquer momento poderia torcer o pé e quebrar o pescoço enquanto rolava. Chegou até o final das escadarias sem maiores incidentes. O dois corpos que caíram achavam-se amontoados, um deles ainda abria e fechava a boca, incapaz de se mover. Aqueles olhos vazios, brancos, fitavam Devin vorazmente.

Colou o ouvido na porta que dava para o hall de entrada do prédio. Ouvia tiros, gritos e explosões ao fundo. Parecia estar ouvindo choros, mas uma sirene estava parada muito perto da entrada do prédio para ele ter certeza. Respirou fundo, e abriu a porta.

Uma viatura policial havia invadido pelas portas de vidro, deixando o ar sujo da cidade entrar ali. O elevador do lado da porta estava fechado, e a saída para os fundos do prédio estava retorcida como se algo houvesse forçado sua entrada, mas sem sucesso. Pela luminosidade que vinha da rua, Devin achou que deveriam ser umas 17h. A fumaça encobria boa parte da luminosidade, mas havia vento vindo do mar limpando os céus, mas alimentando os focos ocasionais de incêncio.

O vidro do carro patrulha estava rachado, e havia sangue ali. O motorista continuava ali estirado, com o crânio rachado, não parecendo se mover. Devin chegou com a arma e cutucou a cabeça do policial. Os dentes se arreganharam e morderam a pistola no mesmo momento. Com o susto, Devin puxou o gatilho e a cabeça do policial foi jogada para trás, expelindo sangue pelo buraco na nuca.

- Que susto, porra! - Devin puxou a pistola do que restou da boca e se assustou ao ver marcas leves dos dentes no cano da arma. Além de rápidos, eles eram bem fortes. Devin olhou para o cadáver e notou que por baixo dos óculos escuros, os olhos não estavam totalmente brancos, como os outros, só nas bordas, onde o óculos escuros eram mais leves. Devin notou também que o braço direito do cadáver que estava em contato com uma réstia de sol parecia muito queimado, quase necrosado. Olhou por cima dele e viu uma escopeta presa entre os bancos. Parecia muito útil na atuação situação. Puxou-a. Trancada. Olhou para o cadáver e respirou fundo enquanto abria a porta e derrubava-o no chão, ficando com as pernas pra dentro. Passou o pé por cima e entrou no carro. Pensou em bater a chave e ver se o carro pegava, mas desistiu ao ver outros carros atrás dele. A escopeta estava presa por um cadeado, e Devin encontrou as chaves no bolso do policial. Se arrepiou ao ter que encostar nele. Destrancou a escopeta e procurou por uma caixa de munição. Achou uma lacrada, com 10 cartuchos. Era pesada. Olhou para o banco de trás e achou uma jaqueta. Não parecia muito pesada nem muito quente. Esticou o braço e a pegou. Enquanto saia do carro e pulava por cima do cadáver, ia colocando a pistola no coldre. Retirou-a e a travou, nunca se sabe o que acabaria pulando no seu peito e disparando-o para sua morte. Ajeitou a mochila nos ombros, passou a correia da escopeta em volta do peito e olhou para a porta. Seu pé chutou algo, que ele se abaixou para pegar. Foi um Lucky Strike, sem dúvida.

Acendeu um e empurrou a porta.

20101008

anjo

Nós dois sabiamos que iria doer. O mar lá fora, o sol de leve pela janela, músicas aleatórias que nem pareciam tão aleatórias assim. Deixe teus medos irem embora só por hoje à tarde. A cama ainda estava feita, os dois travesseiros lado a lado. Ele estava de lado, as mãos em frente ao peito, a cabeça abaixada, temendo por eles. E ele disse que precisava de um travesseiro, e ele disse que não conseguia, então ele a abraça pela cintura e a puxa para perto, sentindo o quadril se aproximando do seu, os seus dois braços cruzando na altura do estômago, o calor, o cheiro do cabelo, a respiração. Era um fluxo interminável de sensações, sentimentos, mas nenhum deles iria dar o primeiro passo.

Quando ele abriu os olhos, espantado, ela já estava em cima dele. Ele sempre fora maior, e gostava da segurança que isso passava à ela, e ela coube ali. Um anjo pousou nele, foi o que ele achou. Ela falava, ele ouvia. Ele sentia, e achava que ela sentia também. Sentiu vontade de chorar, porque sabia que amanhã ela teria ido embora, mas queria sorrir por ter tanta sorte, por ter superado só um dia e mesmo que as coisas desmoronassem, ele sempre teria aquele dia, e isso nada poderia levar embora. Ele sabia que ela havia desistido dele, deles, de tudo o que havia sido construído, mas sabia que em alguns momentos eram dignos de ter o resto do mundo deixado pra lá.

Ele se virou, e ela ficou deitada em cima dele sem medo. Sentia o corpo dela ali, em seu peito, em suas pernas, em seu quadril. Ele sabia, também, que quando visse tudo o que inevitavelmente veria, que todos os medos dele virariam realidade. Ela não era mais dele fora da porta daquele quarto, e as lágrimas queimaram em seu rosto sem que ela soubesse. Ele abriu os braços, ele queria morrer ali se houvesse como. Ela abriu também, e entrelaçou os dedos nos dele. Era um anjo, sim. O anjo dele. Sentindo a pele da barriga dele, sentindo de novo todas as vezes que ali brincou, mordeu, apertou forte as mãos dela em torno das suas enquanto a abraçava, deitada em cima dele.

Nós dois sabiamos que iria doer.

20101007

o que é pior então?

ser tratado como
um estranho
sendo sugado nessa
falta de
intimidade

ou saber que
quando tudo
cair
vai doer porque
cada hora vazia
é um vazio no
estômago

e essa dor
não é só
minha

20101004

pôr-do-sol

O som da porta se fechando encheu o quarto. Era um baque seco, como um ponto final. A luz amarela do final do dia brilahva por trás das cortinas opacas, povoando o quarto de contrastes, sombras fundas. A cama, no meio do silêncio, estava desarrumada, todo o caos do universo naquele mar de tecido. na parte final da cama, no meio, o sol refletia em suas costas nuas. Garrafas vazias, bitucas de cigarro, suas roupas. O chão tinha consigo tudo o que poderia ter sido.

Ele estava sentado, sentindo a luz em suas costas, torcendo para que alguma parte dela entrasse no seu peito e preenchesse aquele vazio agoniante. Suas mãos se cruzaram em cima das cobertas que cobriam suas pernas, e ele se espantava ao se dar conta de que estava vivo.

Vivo, sim. Mesmo tendo que vê-la partir em um táxi que ele mesmo pagou, sabendo que ela usou sua escova de dentes enquanto chorava, que tinha que ir, que havia coisas em sua cabeça que naõ são do tipo que iriam passar.

Ele só se deu conta da sua dor ao perceber que até o chão estava menos vazio que ele.



t., a little time ago

20101003

segundos

Ela enchia o quarto, ela enchia sua cabeça. Mesmo não estando ali, ela era parte dominante, parte definitiva de tudo aquilo. E tudo passava tão rápido, e cabos de aço apertavam seu estômago, o calor fazia seus olhos arder, seu corpo todo tremia. Tinha que ser assim, não tinha? O telefone era só enfeite, o escuro lá fora era só detalhe. Por que tinha que ser assim? Era um universo de planos afundando, se perdendo no tempo. E de quanto tempo ele precisava? De quantas mais dúvidas os segundos iam se encher, contando as horas até o nascer do sol? O alcoól não podia mais ajudar, e os sonhos só traziam mais dor. Dor que enchia o quarto, enchia sua cabeça. Era vazio, mas doía. O tempo é relativo, mas cada segundo era doloroso. Cada segundo que vinha assustava, cada segundo que se passava era uma lembrança tão boa. O segundo de agora, entretando, era agoniante. E as pessoas olhavam, e ele baixava os olhos, procurando os passos que o levariam de volta pra onde ele queria estar. Nenhum corpo encaixaria naquele espaço que agora faltava. Todas as peças caíndo, longe do seu desejo.

"eu só queria dizer que eu sinto muito"

20100929

palavras pra te fazer sorrir

Estava escuro ali. Um crepúsculo enjaulado pelas paredes. A luz que vinha era amarela, de algum lugar na imensidão do teto. Sódio, ele achava. A noite lá fora já brincava há horas. Ele achava que podiam ser onze horas, meia noite, outro mundo. Ele havia perdido a conta com a situação, e não se importava com isso. Ele podia ouvir o mar, os carros passando velozes, cada um carregando suas histórias, seus arranhões. A porta de madeira escura parecia sobrenatural naquela luz suave, um portal pra sonhos maiores na penumbra. O sofá era confortável, e ele via suas mãos nos braços da poltrona. A tela da televisão era um espelho de reflexos, o murmurio do vento passando pelas janelas de vidro e indo se perder por aí o deixavam confortável. O som da água escorrendo, batendo no chão, do chuveiro por trás da porta enchia sua mente. De risos, de abraços. De lembranças, de planos. Era impossível controlar aquele sorriso que se permeava por seus lábios.
Engraçado, aquelas borboletas na barriga. Fazendo cócegas no seu estômago, parecendo esquentar todo o peito. Seus olhos por trás dos óculos esquadrinhavam toda a cena, sedentos por guardar aquelas memórias por muito tempo. Ele podia viver com a idéia de que isso nunca seria pra sempre, mas não poderia se conformar consigo mesmo se não fizesse daquilo algo eterno. Olhou pra fora, deixando seus ouvidos registrarem o som suave do registro da água sendo fechado, e as últimas gotas estalando no chão. De baixo da porta, o cheiro era úmido, doce, suave. Ele sempre amou aquele cheiro, ainda mais agora que ele vinha um pouco diferente, mesclado com o cheiro daquela pele.
O trinco girou, e ele sentiu o ar se deslocando com a porta. Era uma tempestade, uma dança louca no seu estômago.
O vapor de água veio rolando, flutuando no ar. Ele entendeu como a água devia se sentir. Seus pulmões se contrairam, libertando as borboletas. Seu fôlego não via jeito de ficar nos seus pulmões, não com ela ali na frente dele. Sua camiseta cobria a parte de cima do corpo dela, e o resto se resumia a só uma peça. Ela ficou ali parada, a luz brincando de mil tonalidades, mil contrastes nela. Ele parecia conhecer cada curva do corpo dela, e parecia ansiar em conhecê-las de novo. Suas mãos se contrairam de leve por cima da poltrona, e seus olhos brincavam no corpo dela. Começavam dos pés que se apoiavam em pontas e iam subindo pelas coxas. Ah, aquelas coxas eram a apoteose de todo o desejo dele. Firmes, mas suaves. Brancas, lindas. A luz parecia guiar seus olhos, subindo, subindo, parando pra sorrir entre as coxas e o quadril. Os ossos despontavam do quadril, um convite às suas mãos, à sua boca. Não havia como parar os olhos, e eles absorviam cada detalhe, subindo pela barriga, pelo volume dos seios dentro da camiseta. Seu rosto sorria pra ele, por cima daquele pescoço delicado, que ele já sabia onde mordiscar.
Sabe quando tu entende que as coisas podem fazer sentido só vendo um sorriso? Que tu pode esquecer tudo que aconteceu antes, depois, o tempo é nada, por um sorriso? Era assim que ele se sentia.
O sorriso dela só embelezava ainda mais o rosto dela. Era grande, quente. Os lábios dela pareciam convidá-lo a se levantar e tomá-la nos braços, mergulhar neles, beijar, morder, sentir o calor. Os olhos brilhavam na luz amarelada, o cabelo dela caia pelos lados do rosto. Em quantos sonhos, em quantas tardes, ele já havia visto aquele cabelo? Era como ele gostava, e até mesmo quando ele estava enrroscado na sua mão, ele era lindo.
Em suma, enquanto seu fôlego se esvaziava e aqueles segundos pareciam durar uma vida toda, ele a amou. Amou o corpo, a presença, o sorriso. Amou cada centímetro do corpo dela, cada pensamento bom que ela trazia e todos os ruins que ela ofuscava.
Quando viu, estava levantando da poltrona, indo em direção à ela. O mundo lá fora era outra coisa, e as consequências que esperassem do lado de fora. Será que um dia ela saberia quão sortudo ele se sentiu naquele momento? Quão feliz? Ele esperava que sim.
Enquanto os lábios dele encontravam o dela, as mãos iam para a pele e a blusa ia de encontro ao chão, ele pensou que um dia talvez escrevesse sobre aquilo quando tudo aquilo ainda brilhasse em sua imaginação.



feliz aniversário
meu anjo
30092010

20100928

como fogo

O fogo subia, lambendo as paredes sujas, confrontando a garoa fraca que caía na rua. Era o número 621 da rua principal, e agora ele ardia em um inferno rubro. Os céus cinzas, metálicos, derramavam aquela água que mais parecia uma zombaria, por de nada adiantava contra a força das chamas. Toda a parte frontal do prédio estava enegrecido pelas línguas de metros e metros, soltando aquela fumaça espessa que seria vista por quilômetros de distância.

Em cada poça de água da rua, o reflexo do fogo parecia queimar mil outras dimensões, um espelho sem fim daquela loucura.

As pessoas em volta corriam. Algumas paravam e colocam as mãos na cabeça, se perguntando que mente havia iniciado tamanho caos, tamanho poder começando na cabeça diminuta de algum fósforo já há muito queimado. O irônico era que algumas pessoas estavam ali só para apreciar o estrago, se deliciando com os estalos e o rugido do fogo, as lágrimas que escorriam da tinta da parede.

O céu zombeteiro continuava seu rumo, as sirenes já despontavam no limiar da audição, a luz enchendo todos que estava ali perto. O trânsito parado, o ser humano em sua eterna necessidade de ver a desgraça do próximo desacelerando até quase parar para contemplar a destruição.

Aquele fogo selvagem dentro de cada um. E dentro desse fogo, no núcleo daquela reação, juntos na esquina, talvez o estopim humano daquele fogo. Duas pessoas, duas almas, dois corações se contentando com o calor e o infinito, entrelaçados nos braços um do outro. Era selvagem, mas era delicado. Apesar de tudo, eles só estavam aproveitando o fogo como todos ali, e as risadas deles enchiam alguns de terror, outros de contentamento.

E na mente de todos, e na mente de nenhum. Como, afinal, alguém poderia temer algo que brilhava em todas as poças daquela rua?


t.

20100924

a volta pra casa (pt. I: infinito)

Eu volto, eu sempre volto. Eu volto melhor, mesmo tu não esperando por mim. Tu sabe que é verdade, eu sempre estive aqui pra provar que eu faço essas coisas.


Passava pouco do meio-dia agora. O ar estava abafado, elétrico. Algo sobre alguma tempestade para o final do dia. O sol, entretanto, ainda refletia no capô do carro, lançando raios de luz que refletiam nas lentes dos seus óculos, provocando explosões de luzes dentro do seu cérebro. As janelas iam fechadas, o ar-condicionado funcionava, e no rádio alguma música daqueles tempos tocava. Algo sobre a casa que Jack construiu. O ocupante do carro usava uma camiseta cinza, um jeans azul-escuro, seus tênis apertando suavemente o acelerador. No banco ao lado, algumas cópias de seu mais recente livro, alguns rascunhos apressados. No chão, uma pasta com o símbolo de algum raio esquecido por enquanto. Não havia pressa, havia dúvida. Via poucas pessoas na rua, ainda faltavam dois meses até o pico da temporada. Enquanto descia a colina em direção à cidade, suspirou de leve.

A cidade era uma velha conhecida dele. Dez anos atrás e ela era parada obrigatória, pelo menos uma vez a cada quinzena. Ele conhecia seus caminhos de cor, sabia onde ir, onde levar seus passos. Ele gostava de lá. Era pequeno, pacato, não havia crescido muito nesse tempo. Alguns prédios a mais, restaurantes que mudaram de nome, seus pássaros em todas as ruas. E descendo a colina de acesso, seu carro vinha descendo, absorvendo a luz do sol.

Parou na primeira entrada que achou. Precisava sentir o mar e lembrar de tudo. Fazia tempo, e ainda doía. Parou o carro, pensando que se a achasse, ainda iria apagar o carro na saída e xingar baixinho. Saiu do carro, e o baque do cheiro foi como uma avalanche, como uma onda maior das milhões que quebravam ao alcance dos seus passos. Assim como ele se lembrava, a cidade estava quieta, só o rugido das ondas e o assovio do vento tocando grãos minúsculos de areia contra seu corpo, batendo nos óculos e revolvendo seu cabelo. Sentou-se à beira da areia, em um murinho de cimento. Perdeu o tempo e perdeu o céu. Quando finalmente os anos o deixaram voltar para sua própria órbita, seus braços estavam avermelhados. Nada bom, velho sol. Nada bom.


- Eu nem imaginava que tu iria vir!
- Mas eu disse pra ti que viria, e quando eu falo, eu venho. E vamos lá, coloque um sorriso nesse rosto e me convida pra entrar.


O relógio no pulso já dizia que eram quase quatorze horas e ele decidiu seguir seu caminho. Não havia muito o que fazer por ali. Ele só precisava apaziguar aquilo tudo, enterrar e guardar todos esses momentos que mesmo dez anos depois ainda insistiam em voltar à noite, quando a hora é nenhuma e todos os sonhos do mundo gritam sua coragem.

Virou-se olhando pro céu, vendo nuvens que se formavam perto dos morros, ainda longe do sol. Abriu a porta do carro, escutando o tique-e-taque, e apertou o botão da capota. Ficou ouvindo o zumbido do motor elétrico liberando o teto do carro, retraíndo a capota. O couro claro, cobrindo os dois únicos lugares do carro, pareciam querer fugir e se juntar à areia. Talvez ele quisesse isso também, só se sentar lá e ouvir as ondas até que tu do desabasse como deveria ser.

Entrou no carro, colocou a chave na ignição, engatou a ré e foi saíndo, manobrando, até voltar pra estrada.

Ele estava com medo da tempestade.


- Eu tenho muita sorte mesmo, é só sair da tua casa que começa a chover, hein! Será que alguém vem me buscar?


Entrou na rua principal, sentindo o cheiro do mar, a brisa morna. Ele se lembrava como se tivesse sido ontem, era a quinta depois do mercado. Acelerou um pouco, mas sem passar dos quarenta por hora. Não era um dia de pressa.

Como sempre, como anos atrás, ele só lembrou da seta para virar quando estava em cima da curva, mas a fez mesmo assim. Subiu a pequena rua e seguiu à direita. A cada metro, eram lembranças. O sorriso dela parecia estar no seu ouvido, o calor da respiração dela no ombro dele, cada centímetro de pele colada na dele. Estava perto, cada vez mais perto. Parou em frente aquele lugar que tantas vezes antes havia parado. Não esperava mesmo ver aquela casa, mas sentiu um aperto engraçado na garganta ao notar o prédio que agora estava ali. Apagou o carro e ficou olhando em frente, ao longe. Tamborilava os dedos na direção sem se dar conta que era o ritmo de uma música que ele havia mostrado há muito tempo atrás, antes de sonhar com isso tudo.

Olhou para o relógio, eram quase quinze horas. As nuvens se pronunciavam ainda mais, o tempo ruim.

Ligou o carro, contornou a rua pensando se já era hora de ir embora.


- Quer vir dormir aqui? Eu vou te buscar.
- Eu quero ir, mas.. Mas eu tô com medo.
- Não precisa ter medo, eu vou cuidar de ti.


Parou em algum mercadinho aleatório. Não queria mais pensar muito, o sol nem parecia brilhar mais. Talvez chovesse antes do que ele pensava. Entrou e foi andando pelo mercado, simplesmente perdendo tempo, mais tempo, e ele teria que se contentar com isso. Ela se fora, e com ela muita coisa. Ninguém espera por ninguém e a cada noite é pior. Olhou para o relógio e o tirou. Colocou no bolso e avançou até as prateleiras do fundo, querendo pegar algum chocolate e ir embora, voltar pra qualquer lugar. Ele precisava tirar aquele amargo da garganta. Pegou qualquer um, não fazia diferença. No fim, nada fez muita diferença.

Foi caminhando devagar até o balcão, abençoando a penumbra que havia ali dentro. Todas as embalagens coloridas pareciam opacas, vazias por dentro. Como tudo que ele ainda tinha pra acreditar. Viu seus livros em uma pequena estante. Viu uma garota, só alguns anos mais nova, folheando um deles. Ele já havia visto aquele cabelo e aqueles quadris em algum lugar, não tinha?


- Não consigo extamente me ver como um escritor famoso. Provavelmente eu vou terminar como um escritor falído e alcóolatra.
- Faz o que tu quiser, só não para de escrever!


O relógio machucava a pele dele, devia ter a ver com a temperatura, irritando a pele. Tirou-o do pulso esquerdo e escorregou para dentro do bolso da calça. Em algum lugar, algo sobre estar perdido e ter alguém pra lhe guiar era cantado baixinho. Decidiu que veria como andavam os preços, buscando pelo seu livro preferido, desde sempre. A Tua Mão na Minha. Ele lembrava até hoje de ter começado a escrevê-lo quando ainda estava na faculdade, brincando de explodir coisas com eletricidade, desejando poder parar o tempo naqueles anos tão completos.
Esticou a mão esquerda, que estava sem relógio, revelando uma pequena tatuagem, o encontro de dois círculos. Passou pelo lado da moça que via seus livros também, torcendo pra não ser reconhecido. Havia fãs realmente engraçados, e alguns amedrontadores.
Ele sentiu. Foi quase como uma descarga elétrica, arrepiando até ele. A moça deu um pequeno pulo ao ver seu pulso passando ao seu lado em direção à prateleira. Temendo tê-la assustado, ele já repassava na mente mil desculpas pelo incômodo, quando viu também.


- Eu sempre quis tatuar o símbolo do infinito no pulso, é o meu lado nerd falando mais alto.
- Ah, eu também sempre quis, nem vem!


O pulso dela mostrava o mesmo que o pulso dele. Dois zeros colados, um oito deitado, tanto faz. Era o infinito, o infinito naquele mercadinho escuro no meio de uma praia que há muito ele havia deixado. Seu estômago deu voltas, suas pupilas contraíram rapidamente para irem se dilatando ao extremo, sua pele arrepiou.

Simplesmente não podia ser.

No meio de todas as probabilidades, no meio de infinitas estatisticas e chances e tudo o que ele acreditava. Ela ia se virando, e o tempo pareceu segurar todos os seus cavalos e fazer daquele mais um desses segundos que duram pra sempre e tu acaba lembrando pra sempre em todos os dias que o sono demorar pra vir. O contorno daqueles olhos, tão únicos, que ele havia reparado logo, e o cheiro dela, o cheiro dela o fazia querer perder os sentidos. Eram os mesmos lábios, os mesmos olhos, as mesmas linhas. Era espantoso, e o chocolate e o livro caíam de suas mãos frouxas, e os braços, lado a lado.

Um segundo que durou pra sempre.


- Eu volto pra te buscar.



t.

Post-Mortem

originalmente escrito em 8/09/2010,
com a proposta de redação sendo o diário de
algo que não seja humano.



Eles sempre esperam por mim. Todo dia, toda hora, apesar do medo racional pela minha vinda inevitável. É por isso que estou aqui sentada, minhas asas escuras como meus olhos dobradas para trás.

É pele, eu acho. É pele este pedaço que resolvi tomar como diário. As letras são escarlates e a ponta afiada de uma pena minha corta limpo as palavras.

Todos eles esperam por mim e eu nem sequer posso me visitar parar me livrar dessa dor, dessa angústia.

As imagens vem até mim, uma criança, só uma criança e eu estou tão cansada de livrá-los de seus eternos jogos, tão mais eternos que todos eles juntos.

É sempre assim, todo dia. Esse diário terá uma só página, porque eu sei que vai ser sempre assim, até que o último deles venha dançar nas minhas asas.

O ódio. O ódio que eles tem de mim, como se em algum ponto eu pedi para ser isso. Eu venho até eles, os que clamam e os que temem. Às vezes eu sou a única que vai visitá-los, a única que oferece abrigo, envoltos em minha asas frias, mas completas. A única certeza nesse circo de dúvidas que eles criaram.

Eu já posso ouvir ao longe um choro de criança, prevejo os gritos, as pragas, o meu nome amaldiçoado de boca em boca.

Eu não queria ter que fazer isso.

Vou deixar essa página aqui. O nome de todos eles queima na minhas costas.

Vai ser sempre assim.