20100630

essa velha cela enferrujada

O final do dia ia se insinuando. Um recorte laranja ia subindo pela porta, filtrado no vidro sujo daquele quarto.

Os sussurros que vinham das paredes, se fossem ouvidos com cuidados, falariam de um tempo melhor, um tempo onde havia risos de crianças, gemidos, promessas de amor. Era um quarto onde a outrora cuidada cama de casal jazia no passado, e tudo o que sobrara fora um amontoado de colchas no chão sujo.

(eu não sabia o que fazer era tudo escuridão dentro da minha cabeça e quando eu vi ah quando eu vi eu estava correndo pros teus braços sem saber se isso era certo e não havia mais jeito de me livrar daquilo não agora não quando estava no meu sangue)

Três frascos estavam do lado do amontoado de colchas, que parecia respirar, parecia viver. Mas não, ele sabia que não vivia mais, as consequências só tardavam a chegar. As seringas espalhadas pareciam refletir as palavras de fracasso em sua mente cansada, seus olhos injetados. Livros e mais livros se misturavam perto das paredes. Os ossos a mostra resultavam na falta de qualquer tipo de restos, e só a fuligem, o pó e o fracasso por não poder fazer nada estavam ali com ele. Um pedaço amassado, mil vezes abraçado, de uma fotografia antiga estava na mão que saía do amontoado sujo do chão. E era de fato só um pedaço, e só mostrava aquilo que ele mais amava, e quando a doce corrente transbordava naquele sangue, e foto ia caíndo em direção ao chão, e ele sonhava antes mesmo de ela acertá-lo.

(pai olha só eu desenhei pra ti é você meu herói e lá estava ele sorrindo e eu nunca vou conseguir esquecer aqueles olhos brilhantes e ela e ela estava lá também e o sorriso dela era um ótimo porquê e cá estou eu sempre predisposto a esquecer a melhor parte um herói morrendo sem honras)

Seus olhos se abrem pro mundo de novo, e sua respiração está muito mais fraca agora. E seus olhos esquadrinham a porta, os livros e o jogo de luzes que o fim de tarde produzia neles. Era a cor da dor, quente, insinuante, transformando tudo em ferrugem. Era a dor de quem não pode fazer nada, só sentar e assistir, como uma platéia vendo um malabarista se soltando de suas cordas e mergulhando de encontro ao chão, seu velho amigo. Não é engraçado como tudo cai em pedaços no final?

(e seus ossos eram os meus minha casa era a sua casa e só o que faltava era entender que a vida deles não era eterna e que deveria chegar a esse fim o que doia era pensar pai pai pai eu fui primeiro olá amor como foi no trabalho e eu vim aqui só pra pedir que você não se esqueça de lembrar de mim e quando tudo caiu e o medo de perder me afastou eu corri dos teus braços e eu não soube quando tempo eu aguentaria tudo isso evidente cravado nos meus olhos)

Dez mil fragmentos de vidro jaziam perto dos livros, pedaços rachados de madeira, cinzas de fotos queimadas. Era assim, então. No meio da sujeira de tudo que um dia ele foi, frascos e seringas pra apaziguar a dor, aquele vazio imenso que se instalou, que nunca conseguiu preencher. E quando os dias passavam vazios, em meio a livros, algumas bebidas e lembranças, lixo, perda e eventuais saídas pra se alimentar do que quer que encontrasse. E em uma dessas, ele encontrou a solução. E sua respiração era inversamente proporcional ao alívio que ele sentia ao ver tudo escurecendo.

(ei amor posso tirar uma foto do teu sorriso eu acho que eu quero ele assim pra mim sempre radiante radiante do modo que ficou o teu orgulho quando tu viu o nosso filho caminhando pela primeira vez brilhando e sabendo que ele parecia comigo e como tu esperou esses primeiros passos os primeiros balbucios e era tão irônico me ver sussurando na sua barriga feliz por ter te provado que a vida ia mais adiante do que tu sempre achou e tu sorriu)

E então ele abriu seus olhos pela última vez. As seringas rolaram pra longe, e ele sentia espasmos de seu estômago tentando retirar algo que não estava lá. Os frascos se quebraram embaixo dos seus braços, e ele se deliciou em ver o sangue vertendo da dobra do seu pulso. Uma forma inconsciente de acalentar o processo, de evitar que houvesse chance. Ele suspira, sorri e seus olhos fecham para o luz e a sujeira daquele quarto solitário, em um lugar que já não importava.

(e você se perguntava tanto porque eu tentava te mostrar todas essas coisas e enquanto tudo estava apagando dentro da minha cabeça eu entendi eu nunca tive medo de morrer tive medo de continuar vivendo sem lembrar o porquê só que é claro que a vida nunca funcionava assim não pra mim e vocês foram primeiro foram tão rápidos do jeito que vieram e enquanto as luzes se apagam eu gostaria de citar que você é o motivo de eu não estar com medo predisposto a ser eternamente o herói de algo que não luta mais e eu nunca deixaria vocês serem testemunhas disso mas mesmo assim eu nunca pude deixar de lado as evidências e vocês foram todas elas)

A noite já entrava pelo quarto, e luz naquele quarto jamais haveria outra vez. Os livros da base da pilha já iam começando a se escurescer ainda mais, empapados no sangue que escorria. Os cobertores por fim silenciaram sua respiração, e os sussurros e risos vindo das paredes cobraram sua dívida. A sujeira agora era escarlante, e escarlate era também a foto que continuava firmemente presa entre os dedos sujos. O sorriso continuava lá, petrificado pra todo sempre.

(e eu estava protegido nos meus sonhos com vocês)

20100621

this heart of mine

...e o dia ia nascendo, mais rápido do que ele queria. A luz fria, clara, completa da manhã ia lentamente colorindo o quarto. Ele não sabia, de verdade, se deveria ser grato por esses suaves raios. Por um lado, quantos mais raios, mais ele veria ela ali, deitada ao seu lado, dormindo virada pra ele, acomodada em cima da curva do seu braço. Por outro, cada segundo de luz era um segundo se aproximando da hora dos beijos de despedida e do inevitável vazio que se instalaria no seu corpo. Mas por enquanto, nesse interminável segundo, ele sorria. Sorria ao som suave da respiração, sorria aos seus pensamentos, sorria ao momento. Um momento tão único, tão inesperado, e ainda assim, sonhado em mil horas acordadas. Outros sussurros, outras respirações, provavelmente também enchiam o quarto, mas para ele, era só ela, como se o mundo se negasse a entrar em foco, não querendo atrapalhar a luz daquela estrela tão brilhante. E ela também sorri. E na incerteza, ele sorri também, torcendo para que aquele sorriso seja pra ele, seja por ele, para sempre. Ele chega mais perto, e abraça forte, sentindo a pele dela contra a sua, sentindo a respiração quente brincando no seu pescoço, e ele jura pra si mesmo jamais deixar isso morrer, que ele amará pelos dois se for preciso, que ele vai se perder em um sorriso e acordar antes de acertar o chão. É um jogo de risco, onde ele provavelmente não será o vencedor, mas enquanto a luz faz o seu trabalho e os aproxima da hora de um suave adeus, ele a abraça forte como se não existissem segundos a correr...