20101025

Pesadelos da Nossa Carne, I

PARTE I: O SURTO NO OESTE


Capítulo #1


Quando Devin pulou de sua cama, o dia já se arrastava até a tarde, mas ele não teve tempo de conferir. Sirenes gritavam pela cidade. O cheiro de fumaça enchia o quarto no quinto andar. Algo não podia estar certo, mas as batidas eram fortes demais para que ele reparasse nessas coisas.

Levantou-se correndo com as batidas na porta, calçou uma bermuda jeans que estava por perto, uma camiseta folgada e foi correndo até a sala.

- Já vai, já vai! - A sala estava suja e desarrumada, a empregada não havia vindo pela manhã. As batidas continuavam. Eram descompassadas, quase como se algo estivesse se apoiando na porta. Os restos da sua janta solitária estavam ali, junto com as garrafas que agora cobravam o preço com cada batida na porta ecoando em sua cabeça.

Devin chegou em frente a porta, tentando cobrir o sol que entrava pela janela, permeado pela fumaça, que refletia nos vidros em cima da mesa. As batidas continuavam, e um gorgolejo baixo acompanhava cada investida. - Tá tudo bem aí fora? - Devin destrancou a porta, abaixou a maçaneta.

Algo pesado investiu contra a porta e finalmente a abriu, levando Devin de encontro a mesa, onde derrubou as garrafas. A pessoa ali parada, ou o que sobrou dela, ficou um segundo em dúvida e então, cambaleando, se atirou em cima de Devin. Seu reflexo foi de tentar amparar a queda, até ver a camiseta em frangalhos da coisa, com manchas enormes de sangue. Seu corpo rolou para trás, sentindo o vidro cortando seus braços, sentindo o grunido da coisa perto de sua ouvida direita. Conseguiu se levantar.

A coisa no chão devia ter um metro e setenta, e definitivamente já fora um humano. O cabelo loiro desgrenhado cobria só metade do crânio. O outro lado ostentava um brilho branco enevoado em tufos de cabelo e sangue com ferimentos que pareciam mordidas de algum animal. Seus dedos se contorciam em garras, e ele notou que havia algumas unhas faltando. As outras estavam cheias de sangue. A camiseta branca, social, como ele já havia reparado antes, estava suja de sangue, o colarinho rasgado revelando o peito ensanguentado. Os olhos que se viraram pra se fixar em Devin eram de um branco opaco, vazio.

- Acho que algo pode não estar certo aqui. - Seus olhos se arregalavam e tatearam até a mesa procurando um apoio e tocaram na ponta de uma garrafa que havia caído. A criatura se levantou com um ofego e se atirou em direção a Devin com uma velocidade supreendente. Seu único reflexo foi de formar um arco com seu braço e acertou a cabeça da criatura em cheio na têmpora direita. O estouro da garrafa ecoou pela sala, e a criatura cambaleou até a parede. - Acho que isso resolve nossos problemas, garotão.

Mal terminou a frase, o que restou pendendo da garrafa já pendia levemente do seu lado, quando a criatura avançou novamente. A violência do golpe havia arrancado um olho, que pendia preso por pequenos fios de nervos, mas não sangrava. Uma camada expessa de sangue marrom, por sua vez, pareceu encher a cavidade agora vazia. O som da garganta gorgolejava, e Devin foi derrubado enquanto cruzava as mãos acima do peito da criatura. A força foi suficiente pra tirar o ar de seus pulmões, e de perto ele pode ver pedaços de carne pendendo dos dentes amarelados pela nicotina. O cheiro era insuportável de tão perto. Os dentes se fecharam em um estalido perto do rosto de Devin, e demoraram alguns segundos até ele reparar na garrafa ainda presa em sua mão direta, com as lascas de vidro apontadas direto para a cabeça da criatura. - Ah, seu saco de bosta! - Com um movimento rápido, os cacos de vidro penetraram facilmente o lado esquerdo do rosto. O golpe não foi forte o suficiente, porém o outro olho da criatura se soltou com um estalido úmido, e ele pode ver o brilho do vidro por trás dos nervos cortados. Parecia que ele já estava se decompondo, e a idéia deixou Devin com nojo. As mãos da criatura agora arranhavam o chão em volta dele, e a boca mordia às cegas. Aparentemente, seja lá o que estivesse em cima dele, dependia também da visão.

Devin pôs toda a sua força em um movimento ascendente de seu quadril, jogando a criatura para o lado, arrancando a garrafa de sua mão. Atingiu o chão a menos de 40 cm do rosto de Devin, e o som do vidro atravessando a cabeça e quebrando ali dentro foi nauseante. Um último grunido passou pela garganta da criatura, e o corpo relaxou. Devin levantou-se limpando os pedaços de vidro e comida que haviam em si, sentindo-se atordoado. O que diabos havia sido aquilo? Do corredor do prédio, um grito agudo subiu. Ele correu até a porta e a trancou. Algo passou correndo pela frente da porta recém trancada e Devin recuou dois passos. Um grito subiu da sua própria garganta quando seu calcanhar tocou o cadáver no chão.

Praguejou baixinho enquanto se virava. O cadáver continuava lá, imóvel. Seu primeiro pensamento foi de deixá-lo ali, mas e se ele voltasse? Olhou em volta e localizou um pequeno cordão de varal. Teria que servir. Pegou-o e com muita cautela, amarrou as mãos da criatura no pé da mesa. Amarrou também seus pés, lembrando da velocidade com que ele havia avançado. O que seria aquilo? O quarto de Devin era povoado de revistas e livros sobre mortos-vivos, mas aquilo era o mundo real, aquilo era bobagem. Procurou em volta e localizou seu celular em cima do sofá. Enquanto discava para a emergência, foi até a janela.

A fumaça se erguia por toda a cidade. O sinal de ocupado no celular não foi nenhuma surpresa para Devin, que contemplava o caos que havia se instalado nas ruas. Havia sangue, muito sangue. Carros se entruncavam, focos de incêncio se espalhavam. Lá de cima ele conseguia ver pessoas correndo em desespero. Algumas, pela aparência e o modo curvado com que corriam, não eram exatamente mais pessoas. Gritos. Sirenes. Ele viu uma garotinha de uns cinco ou seis anos ser destripada por uma daquelas coisas, enquanto a sua mãe batia inutilmente em outra com sua bolsa, gritando em tons que ele não sabia que uma garganta conseguiria produzir. Um grupo de cinco ou seis pessoas se amontoava em volta de uma criatura que estava prensada por um carro em uma parede de concreto. Acertando-lhe com barras de ferro, não repararam nas dezenas de criaturas que vinham correndo, pulando carros e se movimentando insanamente para cima deles. Eram rápidos, os desgraçados. Um helicóptero passou voando rápido em frente ao prédio. Devin não teve tempo de se perguntar o que um helicóptero fazia voando perto do quinto andar quando viu um tripulante se atirar, enquanto o helicóptero ia de encontro ao chão. Não explodiu, mas as impiedosas pás serraram o que quer que estivesse no caminho. Uma nuvem de sangue ficou para trás do caminho do helicóptero, e pedaços de carne se misturavam aqui e ali com o concreto. A visão fez Devin ter ânsias.

O fluxo parecia levar todos em direção ao norte, indo para o centro da cidade. O helicóptero também parecia se mover naquela direção. Ao virar-se, ouviu novamente aquele grito agudo, só que dessa vez veio do apartamento em cima do dele. Virou para a janela, e o som de vidro quebrando pareceu estar dentro da sua própria cabeça. A chuva prateada de cacos de vidro mergulhou em direção ao asfalto. Ele viu rapidamente uma mulher, provavelmente aquela bela moça do 201 que sempre lhe sorria pela manhã, sendo atirada por mais uma daquelas criaturas, dessa vez uma moça negra, sem um braço e uma parte da calça arrancada, mostrando uma panturrilha roída até o osso. Sangue, muito sangue.

Os olhos da moça do 201 se encontraram com os de Devin, o desespero dos dele, o alívio de acertar o chão dela. E esse foi o epitáfio da moça do 201. Alívio em acertar o chão com uma criatura toda mastigada acertando-a por cima. Devin ficou alguns segundos observando a criatura se levantar e seguir correndo, mancando na perna em frangalhos enquanto deixava a moça lá, com a perna em um ângulo que ninguém gostaria de ter pra si.



Enquanto arrastava o cadáver até o banheiro e o trancava ali, amontoado entre a pia e o vaso, Devin teve tempo de pensar um pouco. Essencialmente, o apocalipse chegara em uma manhã de sábado onde tudo o que ele queria era aproveitar a sua ressaca até que a noite encobrisse seu quarto e ele pudesse se enfurnar em sites obscuros até o nascer do sol de domingo. Um dia normal, como qualquer outro. Um dia onde ele teria que pensar no que iria falar pra Johanna quando atravessasse a cidade no domingo pra tentar acertar as coisas.

No seu quarto, pôs uma jeans comprida, calçou seus coturnos e colocou uma camiseta leve. Armou sua mochila com um casaco, uma lanterna sem pilhas que achou dentro de uma gaveta. Pegou também a pistola que seu pai havia lhe dado quando ele havia resolvido morar sozinho. Tempos complicados, dizia ele. Devin esperava que ele estivesse bem em sua casa na costa, cem quilometros norte dali. Ela estava dentro de uma caixa de sapatos, tampada por algumas meias velhas. Era uma pistola UK USP. Uma ótima arma, e nunca havia lhe deixado na mão quando atirava com o pais nos grandes campos das fazendas que ele tinha no centro do país. Um pouco mais abaixo, havia duas caixas de cartuchos, todos carregados. Não havia mais do que quarenta balas nas caixas, mais treze balas na arma. Deveria bastar. Travou-a e pensou em pô-la na mochila, mas então lembrou-se da moça do 201. Deuses, a idéia de Johanna no outro lado da cidade estava começando a deixá-lo muito nervoso. Falou para si mesmo que estava tudo bem, que os militares estavam cuidando de tudo. E o militar pulando pra fora do helicóptero estaria cuidando?

Pegou suas coisas e foi até a sala, parando por alguns segundos em frente à porta do banheiro para ouvir se havia algo se mexendo. Aparentemente não. Antes de sair, revirou as gavetas do lado da porta e achou o velho e surrado coldre de peito de seu pai. Atrelaçou em volta de si, verificou o pente da pistola, pôs uma bala na agulha, destravou-a e parou em frente à porta.

- Lá vamos nós, seja lá quem ainda possa ser chamado de 'nós'.

Com a arma na mão direita, usou a esquerda para destrancar a porta. A empurrou, e o silêncio do corredor pareceu muito denso. Olhou para o chão e notou um dos cacos de vidro, e o chutou até o meio do corredor. Nada. Resolveu por precaução chutar um dos pedaços que continha sangue, e ele quicou e parou um pouco adiante do primeiro. Um gorgolejo e o som de passos vacilantes acompanharam aquela sombra ensanguentada em direção ao sangue. - Cheque-mate. - A pistola gritou e a bala atravessou o peito da criatura deixando nada mais do que um pequeno furo no peito. O impacto empurrou a criatura um passo atrás, e ela continuou avançando. Ele começou a tremer, sabendo que não deveria descarregar a pistola inteira na criatura, seria muita falta de estratégia. A imagem dos cacos de vidro empurrando o olho da primeira criatura fazendo-a tombar relampeou na sua mente enquanto ele ajustava a inclinação da arma em direção à cabeça da criatura. Outro grito e um ponto apareceu entre os olhos. Devin abaixou a arma, o brilho do disparo ainda cravado em suas retinas. A fumaça subia do cano ao seu lado e a criatura estava caída.

- "Não esqueça: mire na cabeça", é.

Avançou com cuidado, observando a porta de incêncio a sua direita. Foi até o cadáver, cutucou-lhe com o pé. Ao fundo do corredor, uma mulher atirada contra a parede, suas vísceras se desenrrolando em direção às paredes, marcas de mordida em todo o corpo e aquele olhar vazio. Foi até o elevador, apertou o botão e nada, as luzes haviam sido cortadas. A escada de incêndio lhe pareceu muito assustadora agora. - Merda de dia ruim. Nunca consigo arrumar minhas merdas em um sábado. - Com a pistola empunhada, se moveu devagar até a escada. Um grito inumano irrompeu atrás dele, e seu sangue gelou enquanto ele lembrou daquela teia de intestinos sangrentos. Se virou e começou a rir. A mulher, ou o que um dia fora uma mulher, mexia a cabeça ferozmente, mas não conseguia se mover. O ângulo dela era estranho, possivelmente tivera quebrado a coluna ao ser atirada contra a parede. O riso de Devin se tornou nervoso, quase histérico, ao perceber que Johanna podia estar assim. Olhou em volta, localizou um extintor de incêndio e foi perto da criatura. - Nada pessoal, madame. - O som do crânio sendo esmigalhado ecoou no corredor pequeno. Se virou e voltou até a porta.

Havia dois anos que ele se mudara para aquele prédio ao sul do centro da cidade de Ire. Uma cidade litorânea de aproximadamente trezentos mil habitantes, onde um deles tentava desesperadamente sair daquele prédio e ir atrás de uma pessoa no lado oposto da cidade. O seu bairro era o segundo maior dos três que havia na cidade. Para chegar ao centro-norte da cidade, atravessando o rio que dividia a cidade, era necessário passar pelo túnel sul e seguir em direção ao bairro norte através do centro e encontrar Johanna, supondo que ela estivesse lá. Supondo que ela estivesse viva.

As luzes de emergência há muito estavam sem carga, e ele se perguntou a que horas aquilo tudo havia acontecido e quão forte estava o seu porre para ele não perceber antes. Empurrou com a mão a porta pesada, mantendo a arma em punho. Nada. Abriu a segunda porta em direção às escadas. Havia sangue gotejando de algum lugar lá em cima, e barulhos por todo o prédio, mas nada que oferecesse risco imediato. Colou as costas na parede, sentindo o macio da mochila contra suas costs, agora percebendo que precisava encher ela com coisas logo, antes que a necessidade chegasse. Precisava parar na farmácia na rua defronte ao seu prédio.

Continuou se movendo costeando a parede, mantendo a arma apontada reto para baixo, mas sempre olhando por onde já veio. Descendo a gravidade sempre ajuda. Todas as portas estavam fechadas até o terceiro andar, onde um braço se estirava deixando-a semiaberta. Devin se virou para a porta e começou a passar quando ouviu o som de algo batendo no corrimão alguns andares acima dele. Correu para a parede em tempo de ver mais uma daquelas criaturas caíndo pelo vão da escada, deixando pedaços e sangue pelo caminho, seguido por mais uma outra que ardia em chamas da cintura pra cima. O som de ossos quebrando e carne se espalhando percorreu toda a escadaria e pareceu ecoar lá em cima. Agora a fumaça subia por ali também. Colocando a cautela de lado e deixando o medo afrouxar as coleiras, Devin começou a descer a escada de dois em dois degraus, sabendo que a qualquer momento poderia torcer o pé e quebrar o pescoço enquanto rolava. Chegou até o final das escadarias sem maiores incidentes. O dois corpos que caíram achavam-se amontoados, um deles ainda abria e fechava a boca, incapaz de se mover. Aqueles olhos vazios, brancos, fitavam Devin vorazmente.

Colou o ouvido na porta que dava para o hall de entrada do prédio. Ouvia tiros, gritos e explosões ao fundo. Parecia estar ouvindo choros, mas uma sirene estava parada muito perto da entrada do prédio para ele ter certeza. Respirou fundo, e abriu a porta.

Uma viatura policial havia invadido pelas portas de vidro, deixando o ar sujo da cidade entrar ali. O elevador do lado da porta estava fechado, e a saída para os fundos do prédio estava retorcida como se algo houvesse forçado sua entrada, mas sem sucesso. Pela luminosidade que vinha da rua, Devin achou que deveriam ser umas 17h. A fumaça encobria boa parte da luminosidade, mas havia vento vindo do mar limpando os céus, mas alimentando os focos ocasionais de incêncio.

O vidro do carro patrulha estava rachado, e havia sangue ali. O motorista continuava ali estirado, com o crânio rachado, não parecendo se mover. Devin chegou com a arma e cutucou a cabeça do policial. Os dentes se arreganharam e morderam a pistola no mesmo momento. Com o susto, Devin puxou o gatilho e a cabeça do policial foi jogada para trás, expelindo sangue pelo buraco na nuca.

- Que susto, porra! - Devin puxou a pistola do que restou da boca e se assustou ao ver marcas leves dos dentes no cano da arma. Além de rápidos, eles eram bem fortes. Devin olhou para o cadáver e notou que por baixo dos óculos escuros, os olhos não estavam totalmente brancos, como os outros, só nas bordas, onde o óculos escuros eram mais leves. Devin notou também que o braço direito do cadáver que estava em contato com uma réstia de sol parecia muito queimado, quase necrosado. Olhou por cima dele e viu uma escopeta presa entre os bancos. Parecia muito útil na atuação situação. Puxou-a. Trancada. Olhou para o cadáver e respirou fundo enquanto abria a porta e derrubava-o no chão, ficando com as pernas pra dentro. Passou o pé por cima e entrou no carro. Pensou em bater a chave e ver se o carro pegava, mas desistiu ao ver outros carros atrás dele. A escopeta estava presa por um cadeado, e Devin encontrou as chaves no bolso do policial. Se arrepiou ao ter que encostar nele. Destrancou a escopeta e procurou por uma caixa de munição. Achou uma lacrada, com 10 cartuchos. Era pesada. Olhou para o banco de trás e achou uma jaqueta. Não parecia muito pesada nem muito quente. Esticou o braço e a pegou. Enquanto saia do carro e pulava por cima do cadáver, ia colocando a pistola no coldre. Retirou-a e a travou, nunca se sabe o que acabaria pulando no seu peito e disparando-o para sua morte. Ajeitou a mochila nos ombros, passou a correia da escopeta em volta do peito e olhou para a porta. Seu pé chutou algo, que ele se abaixou para pegar. Foi um Lucky Strike, sem dúvida.

Acendeu um e empurrou a porta.

20101008

anjo

Nós dois sabiamos que iria doer. O mar lá fora, o sol de leve pela janela, músicas aleatórias que nem pareciam tão aleatórias assim. Deixe teus medos irem embora só por hoje à tarde. A cama ainda estava feita, os dois travesseiros lado a lado. Ele estava de lado, as mãos em frente ao peito, a cabeça abaixada, temendo por eles. E ele disse que precisava de um travesseiro, e ele disse que não conseguia, então ele a abraça pela cintura e a puxa para perto, sentindo o quadril se aproximando do seu, os seus dois braços cruzando na altura do estômago, o calor, o cheiro do cabelo, a respiração. Era um fluxo interminável de sensações, sentimentos, mas nenhum deles iria dar o primeiro passo.

Quando ele abriu os olhos, espantado, ela já estava em cima dele. Ele sempre fora maior, e gostava da segurança que isso passava à ela, e ela coube ali. Um anjo pousou nele, foi o que ele achou. Ela falava, ele ouvia. Ele sentia, e achava que ela sentia também. Sentiu vontade de chorar, porque sabia que amanhã ela teria ido embora, mas queria sorrir por ter tanta sorte, por ter superado só um dia e mesmo que as coisas desmoronassem, ele sempre teria aquele dia, e isso nada poderia levar embora. Ele sabia que ela havia desistido dele, deles, de tudo o que havia sido construído, mas sabia que em alguns momentos eram dignos de ter o resto do mundo deixado pra lá.

Ele se virou, e ela ficou deitada em cima dele sem medo. Sentia o corpo dela ali, em seu peito, em suas pernas, em seu quadril. Ele sabia, também, que quando visse tudo o que inevitavelmente veria, que todos os medos dele virariam realidade. Ela não era mais dele fora da porta daquele quarto, e as lágrimas queimaram em seu rosto sem que ela soubesse. Ele abriu os braços, ele queria morrer ali se houvesse como. Ela abriu também, e entrelaçou os dedos nos dele. Era um anjo, sim. O anjo dele. Sentindo a pele da barriga dele, sentindo de novo todas as vezes que ali brincou, mordeu, apertou forte as mãos dela em torno das suas enquanto a abraçava, deitada em cima dele.

Nós dois sabiamos que iria doer.

20101007

o que é pior então?

ser tratado como
um estranho
sendo sugado nessa
falta de
intimidade

ou saber que
quando tudo
cair
vai doer porque
cada hora vazia
é um vazio no
estômago

e essa dor
não é só
minha

20101004

pôr-do-sol

O som da porta se fechando encheu o quarto. Era um baque seco, como um ponto final. A luz amarela do final do dia brilahva por trás das cortinas opacas, povoando o quarto de contrastes, sombras fundas. A cama, no meio do silêncio, estava desarrumada, todo o caos do universo naquele mar de tecido. na parte final da cama, no meio, o sol refletia em suas costas nuas. Garrafas vazias, bitucas de cigarro, suas roupas. O chão tinha consigo tudo o que poderia ter sido.

Ele estava sentado, sentindo a luz em suas costas, torcendo para que alguma parte dela entrasse no seu peito e preenchesse aquele vazio agoniante. Suas mãos se cruzaram em cima das cobertas que cobriam suas pernas, e ele se espantava ao se dar conta de que estava vivo.

Vivo, sim. Mesmo tendo que vê-la partir em um táxi que ele mesmo pagou, sabendo que ela usou sua escova de dentes enquanto chorava, que tinha que ir, que havia coisas em sua cabeça que naõ são do tipo que iriam passar.

Ele só se deu conta da sua dor ao perceber que até o chão estava menos vazio que ele.



t., a little time ago

20101003

segundos

Ela enchia o quarto, ela enchia sua cabeça. Mesmo não estando ali, ela era parte dominante, parte definitiva de tudo aquilo. E tudo passava tão rápido, e cabos de aço apertavam seu estômago, o calor fazia seus olhos arder, seu corpo todo tremia. Tinha que ser assim, não tinha? O telefone era só enfeite, o escuro lá fora era só detalhe. Por que tinha que ser assim? Era um universo de planos afundando, se perdendo no tempo. E de quanto tempo ele precisava? De quantas mais dúvidas os segundos iam se encher, contando as horas até o nascer do sol? O alcoól não podia mais ajudar, e os sonhos só traziam mais dor. Dor que enchia o quarto, enchia sua cabeça. Era vazio, mas doía. O tempo é relativo, mas cada segundo era doloroso. Cada segundo que vinha assustava, cada segundo que se passava era uma lembrança tão boa. O segundo de agora, entretando, era agoniante. E as pessoas olhavam, e ele baixava os olhos, procurando os passos que o levariam de volta pra onde ele queria estar. Nenhum corpo encaixaria naquele espaço que agora faltava. Todas as peças caíndo, longe do seu desejo.

"eu só queria dizer que eu sinto muito"