20101101

Pesadelos da Nossa Carne, II

Capítulo #2


A rua de Devin se extendia do extremo leste do bairro até se dividir perto do final oeste. Começava no mar e terminava em duas grandes empresas, uma de motores para carros e outra de fretes com caminhões. O vento soprava constantemente por ela, e a brisa vinha salgada. Na metade do caminho do mar até a intersecção para as grandes empresas da parte oeste, havia a rótula que levava até o túnel sul que ia em direção ao bairro central. À partir desse ponto, o espaçamento dos prédios e casas ia aumentando, dando espaço para as árvores e praças. O túnel passava por baixo do rio Satr que seguia em direção ao centro do estado, enquanto o túnel ia para o bairro central. O prédio de Devin, o Solar, ficava há 4 quadras da rua do túnel.

Devin saiu pelos cacos da porta de vidro, pela lateral do carro patrulha. A fumaça era soprada em direção ao sol. Subiu no capô de um carro que havia engavetado com o carro patrulha e olhou em volta.

Até onde podia ver, havia carros batidos. Podia ver um carro do corpo de bombeiros tombado trancando completamente a via atrás dele, impedindo que a fumaça na frente do seu prédio se dissipasse, mal sabendo que a falta de vento para carregar o seu cheiro simplificou seu dia. Mais adiante, em uma trilha de sulcos no concreto, estava os restos do helicóptero, uma hélice apontando para o sol como um dedo acusador. Havia sangue nela. Algo pendurado que pareceu muito com um resto de intestino dava volta na hélice que estava à direita e ia em direção ao chão, atrás de um carro parcialmente amassado. A farmácia estava ali, há dez metros dele. Até onde ele conseguia enchergar, não via nenhuma daquelas criaturas. Empunhou a escopeta, uma Remington 870, segundo a inscrição. Subiu e desceu com a telha por todo o cano, ouvindo o clique do cartucho entrando em posição. Cinco balas no corpo, mas 10 nas caixas que pesava dentro do casaco. Teriam que servir. Tragou o cigarro enquanto descia até a rua, contornando um carro cujo aparelho de som ainda cantava.

Chutou uma latinha de refrigerante que foi quicando e ecoando por toda a área. O vento pareceu se calar somente para a latinha ter sua vez de fazer barulho. Uma cabeça levantou de trás do capô do carro amassado, o intestino que descia pela hélice em sua boca ensanguentada, os olhos ainda com um pouco de cor.

(you will be...)

Um grito agudo saiu da criança que ele havia visto ser mastigada viva da janela do seu quarto. Sua barriga estava aberta, revelando a coluna pequena e algo que parecia com um fígado pendurado em uma das costelas finas.

(...the death of me...)

Ela se atirou pra cima do capô enquanto Devin dava um passo pra trás levantando a mira da escopeta.

(...yeah, you will be...)

Era só uma criança, mas foda-se, aquilo era sábado à tarde.

(...the death of me)

A explosão da escopeta fez os braços de Devin voarem pra cima, enquanto pedaços da cabeça da criança voavam em todas as direções possíveis, formando uma nuvem de sangue e ossos. Os tiros secundários abriram rombos na lataria do carro, por onde aquele sangue espesso que parecia encher aquelas criaturas escoava pelo capô azul e se infiltrava nos furos. O barulho do disparo pareceu rolar e rolar e rolar. Devin olhou para a rua e viu talvez 10 cabeças viradas pra ele. Todos eles estavam no sol, e seus olhos eram daquele branco opaco e vazio, a pele caíndo em volta do corpo como se a fumaça e o calor estivessem cozinhando-os. Dentes se arregalaram em dúvida, mostrando aquele rubro líquido. Devin sentiu o sangue gelar por inteiro quando uma brisa passou por seu cabelo em direção às criaturas. Clique. Claque.

Quatro dos mais próximos viraram para o som da arma sendo engatilhada, e ao sentir o cheiro da brisa, dispararam em direção à Devin, que saiu correndo em direção à farmácia, torcendo para que a porta estivesse aberta. O cigarro dele saiu voando. O que estava há somente dez metros de Devin pisou em um boeiro que havia sido parcialmente destampado pela queda do helicóptero fraturou a perna com um barulho que pareceu tão horrível quanto à cabeça da criança explodindo. Não pareceu o afetar, no entanto. Continuou se arrastando com o que restou da perna. Os outros passaram por ele. Devin esperou que pelo menos três dele se alinhassem pra correr e disparou mais uma vez, dessa vez abrindo um rombo imenso no ventre da primeira criatura, e danificando seriamente o peito das duas atrás. O sangue pintou o chão e Devin assistiu maravilhado enquanto um braço dava piruetas perfeitas no ar e caía dentro do boeiro.

- Cesta! - ele gritou no êxtase daquela loucura, carregando a arma mais uma vez e chutando a porta da farmácia. - Porra, porra, porra! - Havia mais duas criaturas dentro da farmácia abafada e escura. Os olhos delas seguiram Devin atravessando o corredor central, e logo partiram para cima dele. Devin estava num espaço pequeno, não podia atirar com a escopeta sem ter chance de se acertar com algum fragmento. Quando a primeira chegou perto, Devin virou a arma em um arco e acertou-lhe o queixo com a coronha da escopeta, arrancando a mandíbula e esmigalhando os dentes da criatura. Notou, momentaneamente, que os olhos das criaturas ali no escuro estavam normais e suas peles só estavam pálidas e sujas de sangue, não avermelhadas. Enquanto a primeira criatura caía pra trás, a segunda já estava muito perto, e no reflexo, Devin atirou a escopeta no peito dela, indo para a pistola no seu coldre em seguida. A alça da mira ficou presa no casaco, e enquanto Devin tentava se desvencilhar, a duas criaturas já estavam de pé.

- A gente não pode tentar manter um diálogo?

As duas criaturas se atiraram para cima dele. Devin conseguiu retirar a pistola do coldre, destravou-a mas já era tarde, as duas estavam em cima dele. O mundo ficou escuro com o peso delas tirando o ar de seus pulmões, mas Devin viu a chance de acertar uma delas. - Engole... - Encostou a arma no queixo da segunda criatura. - ...isso. - Atirou e os pedaços do cérebro da criatura foram pintar o teto. Enquanto tentava se desvenciliar do primeiro zumbi, começou a rir desvairadamente ao perceber que ele tentava lhe morder com o que restou da boca, fazendo pressão na correia dura de couro da arma em seu peito. - Foi mal, parceiro. - O som do tiro encheu a farmácia.

Devin levantou-se e olhou ao redor. Uma das criaturas estava com um jaleco branco, possivelmente trabalhava ali na farmácia, o outro parecia um cliente. Continuou olhando e não notou mais nada, por enquanto. Com a arma em punho, foi lentamente se movendo. Parou, Alçou a escopeta e a pôs em volta do ombro, apoiando-a na mochila às suas costas. As luzes estavam apagadas ali dentro, e o sistema de circulação de ar também. A luz do final do dia se filtrava pelas janelas, e de vez em quando ele via uma daquelas coisas passar correndo, mas não viu nenhuma pessoa. Continuou andando e chegou até o balcão, onde encontrou outro funcionário da farmácia. Ele havia sido mastigado até os ombros, nos dois braços, e uma perna inteira havia sido dilacerada. Seu estômago brotava do abdômen e espalhava sangue por tudo. O crânio parecia afundado nas laterias, como se algo tivesse apertado sua cabeça até sua morte. Não parecia se mexer. Devin cutucou-o com o pé. Nada.

- Vocês são zumbis, não são? E olha eu aqui conversando com um.

Achou a portinha dos fundos que dava para um pequeno depósito de suprimentos e medicamentos. Cautelosamente, andou e espiou pelas estantes. Nada. Localizou duas portas no final do depósito. Uma era um banheiro, a outra era uma porta que dava para um beco no meio da quadra. Espiou e viu uma daquelas criaturas mastigando o que parecia ser um cachorro. Devin registrou essa informação enquanto fazia mira com a pistola. Ele saíria por aquele beco amanhã, e era melhor assim. Quando a pistola se alinhou com o cocoruto da cabeça do zumbi, Devin atirou. O escalpo deu voltas no ar enquanto o zumbi caía estrebuchando no chão. Entrou e fechou aporta, empurrando uma estante para a trancar por ora. Voltou até a área principal e começou a dar um pouco de segurança ao local, teria que passar a noite ali. Devin supos que a luz tinha algo a ver com os olhos das criaturas e não seria legal estar lá fora com elas além de tudo, enchergando. Arrancou uma prateleira e atravessou nos puxadores da porta, abaixando as grades em seguida. A escuridão ali parecia comprimir suas retinas. Foi até os fundos e achou um balde de aço, pegou algumas gazes e tocou dentro do balde, procurou alcool e atirou por cima. Quando a sua lâmpada improvisada queimava, começou a arrastar os dois cadáveres para trás do balcão, junto com o terceiro. Pegou algumas folhas de um jornal velho e espalhou por cima, vendo as notícias dos dias anteriores ficando vermelhas. Olhou em cima do balcão e achou um celular, e não se surpreendendo ao perceber que não havia nenhuma barra de sinal na tela. O telefone fixo também estava mudo. Olhou em volta. Pegou quatro ou cinco pacotes de aspirina, usou a chave que estava no bolso do cadáver do balcão para abrir uma pequena grave em volta dos remédios mais sérios e pegou penicilina. Achou uma pequena bolsa e colocou tudo ali dentro, pegou mais algumas gazes, esparadrapos e pôs tudo na mochila. Nunca se sabia.

Enquanto Devin empacotava a mochila e a colocava num canto do depósito, a noite caia.


24 horas desde que a infecção havia explodido no distrito militar da área rural de Ire. O governo havia enviado tropas por toda a Ire para tentar contar a infecção, que saiu de controle aproximadamente 18 horas após o primeiro contágio. As tropas haviam sofrido baixas de aproximadamente 96%, enquanto o número de pessoas não-infectadas de toda a população era de apenas 2%. Desses 2%, somente um inviduo era geneticamente imune ao vírus.


Devin passou a noite toda acordado, abraçado na escopeta. O som era aterrorizador. Eles pareciam muito mais ativos à noite, mais conscientes dos arredores. Havia 5 ou 6 parados nas janelas, sem se mover, as mãos nos vidros, babando aquele sangue espesso como em antecipação à carne quente de Devin. Batidas secas vinham da porta que dava para o beco, e algo pequeno se arrastava correndo pelas tubulações de ar. Devin olhou para o relógio em cima do balcão, tiquetaqueando algo próximo das seis horas da manhã. Levantou-se e foi até os zumbis parados nas janelas. Eles não embassavam o vidro, mesmo colados neles. Arreganharam os dentes e começaram a forçar o vidro. Devin estacou ao ver uma mulher passando correndo pela frente do prédio e mais dois zumbis correndo atrás dela. Desviou o olhar quando ela tropeçou, e os sons de mastigação entrecortados pelos gritos chegou até ele. Aquilo era o inferno, e Devin estava vivo nele.

Tirou a pistola do coldre, e verificou o pente. 8 balas ainda. Engatilhou uma, recuou o cão da arma até ouví-la travando. Encostou a saída do cano no vidro em frente a testa de um dos zumbis, por entre as grades.

- Como será que deve ser aí dentro? - Olhou naqueles olhos enquanto recuava um pouco a pistola e apertava o gatilho. O vidro era anti-estilhaços, e pelo buraco que a bala viu Devin pode ver a cabeça do zumbi sendo atirada para trás enquanto caia. Os outros começaram a bater firme no vidro. Devin encostou a pistola novamente e mais uma cabeça foi jogada para trás. Quatro zumbis se juntaram perto dos dois furos. Devin foi até a prateleira, pegou uma lata de desodorante. O balde estava próximo. Devin empurrou o balde para perto do vidro, apontou os dois aerosóis e a ignição foi instantânea. Os dois furos no vidro funcionaram quase como maçaricos, fazendo a carne podre queimar, logo se alastrando para as roupas. Enquanto o fogo consumia duas delas, as outras continuavam atacando o vidro. Em poucos segundos, todos estavam queimando. O dia fora seco, e a fumaça e o calor do fogo durante o dia havia feito as roupas e até mesmo a pele dos zumbis secarem. A gordura exposta pelos ferimentos inflamaram e logo os quatro estavam queimando. Quanto mais queimavam, mais violentos ficavam, atacando o vidro. Pedaços agora caiam para dentro, Devin recuou e largou os frascos no chão, correndo para pegar a escopeta enquanto colocava a arma de qualquer jeito no colde. Os zumbis em chamas agora começavam a se atirar contra os restos de vidro e as grades, largando pedaços pelo chão. Devin viu de relance um mordendo o braço do outro para tentar chegar mais perto. Alcançou a escopeta, se virou e engatilhou. Um dos zumbis estava perto do chão, e seu braço acertou o balde. Quase em câmera lenta, ele virou para a direita, espalhando gaze e alcool por todo o chão. A prateleira com mais desodorantes e álcool foi lambida pelas chamas. Devin se virou, alçou a sua mochila com um braço enquanto corria para dentro do depósito. Uma pequena explosão tremeu a farmácia quando o fogo conseguiu chegar nas garrafas.

Xingando alto, Devin correu até o fundo e empurrou o armário para o lado, deixando a porta livre. Batidas ali também. Olhou para a porta do depósito onde o fogo já lambia a porta. Olhou em volta e localizou uma vassoura. Apoiou a escopeta no quadril e escitou a vassoura, empurrando a maçaneta. Dois zumbis foram lançados em pedaços pela porta ao tentarem entrar. O cano da escopeta subiu, mas Devin conseguiu soltar a vassoura e firmá-la à tempo. Engatilhou novamente e saiu no beco. As suas costas havia uma grande grade de ventilação, e o céu já apresentava uma claridade suave vindo do leste. O zumbi que Devin havia atirado mais cedo continuava deitado, sendo empurrado. Uma sombra de zumbis se movia até Devin com os olhos brilhantes, cheios de fome, vazios de consciência. Devin subiu a escopeta até o ombro, a firmou e o tiro foi um ponto final na primeira noite dos infectados. Um dos zumbis ainda se arrastava desesperadamente em direção a ele, sendo finalizado por um chute que partiu-lhe o crânio em dois.

O único som agora era coisas estourando com o calor dentro da farmácia. Devin já podia ver a luz do fogo na parte mais alta do seu prédio. Ao longe, ouviu disparos secos, em rajada. Supos que seriam rifles e torceu que fossem militares. Algo que parecia o som das hélices de um helicóptero foi silenciado pelo crocitar de corvos.

- Diabo de dia. - Devin arrumou a mochila nos ombros. Pegou a correia da escopeta, passou em torno do braço e sacou a pistola. - Merda, isso aqui nem tava travado, eu podia ter arrancado um pedaço de mim e nem ia saber de onde veio. - Com a pistola a frente, começou a se movimentar cautelosamente por cima dos cadáver. As mandíbulas ainda se moviam, Devin notou. Aparentemente essas coisas podiam viver sem o corpo desde que a cabeça ficasse intacta. Aqueles olhos estavam quase normais, mas mais adianta havia outra cabeça com os olhos opacos. Passou por elas e seguiu em direção à segunda avenida da cidade.

Ela começava no extremo sul da cidade e se estendia até o Satr. A terceira avenida de Ire ficava há duas quadras oeste dali. A rua do túnel há quatro. A segunda avenida estava bloqueada por um atruncamento de carros. Seu fluxo seguia em direção ao Satr, enquanto a terceira ia de encontro à via principal, a rua de Devin. Ele via fumaça se esguendo na direção do rio, ouvia mais tiros na direção do túnel também, seguida de uma explosão cega de algo que parecia com uma granada. Na falta de escolhas, sem poder descer até o rio pela segunda, Devin teria que cruzar a rua e seguir até a terceira pela principal.

Com a arma em punho, Devin encostou-se na parede do beco.

- Eu não devia ter perdido o controle, eu não devia ter atirado nelas, mas que merda. Agora eu tô aqui, no meio de uma cidade infestada dessas coisas zumbis, com uma porra de uma pistola na mão e o dia nem sequer amanheceu. - Virou-se em direção ao beco e seguiu em frente. Atrás do entruncamento a rua estava bem vazia. Provavelmente as pessoas ao notarem que a avenida estava trancada e resolveram seguir pela principal quando o surto começou. Provavelmente houvera transmissões em televisores e rádios, isso sempre acontecia. Agora a cidade estava morta, sem energia. Devin chegou até uma banca daquelas que ficam na calçada, e com cuidado espiou os jornais. Sem edição extra. Certamente não houve tempo de escrever nada. A coisa estava muito séria. Entrou com cuidado dentro da banca de metal, se sobressaltando com o lojista esparramado entre a cadeira e o balcão. Seu rosto havia sido mastigado, e Devin se perguntou porque ele não havia virado uma daquelas criaturas. Sempre haveria a chance de algumas pessoas serem imunes, mas para garantir, Devin encostou o pé da cadeira que o balconista usava na têmpora e fez pressão com o pé. Os olhos dele saltaram e se misturaram com o sangue e pedaços brancos que Devin reconheceu como um cérebro com o barulho seco do osso. Abaixou a cobertura de metal, acendeu um cigarro e esperou.