20110815

Instante

O sol da manhã entrava pelos vitrais da igreja. Era uma luz pálida, mas fria. Os bancos de madeira pareciam apagados. Havia muita gente ali, sentadas nos bancos, murmurando entre si, mas ela não via nenhuma. Para ela, seria melhor sem ninguém. Eram muitas vidas lamentando uma que se foi.

O mundo parecia etéreo, frágil. Uma máscara para uma realidade muito mais dura do que deveria ser. Faltava sono, sim, mas o que realmente incomodava era aquele vazio. Aquele nunca mais ver. O vácuo na boca do estômago, o aperto na garganta. Estava sentada na primeira fileira, mas poderia estar sentada numa ilha no meio do oceano. Não faria nenhuma diferença.

Estavam todos ali, mas ela mal os via. Sabia que estavam ali, e mais tarde ficaria muito agradecida pela força, mas agora era só ela. E era isso que assustava. Só ela e o mundo todo lá fora, e ele se foi, deixando-a sozinha para confrontar esses milhares de pensamentos que giravam com força dentro da cabeça, fazendo-a querer gritar e gritar e explodir em lágrimas para sempre.

As lágrimas já estavam lá, fazendo companhia. Eram velhas conhecidas, das horas de vigília, das noites insones, daqueles maiores medos. O sol não alcançava seu rosto, mas conseguia iluminar suas pernas. Naquela luz, ela conseguia ver as rachaduras pequenas no teto, a sensibilidade das suas mãos. Tudo se vê quando se lamenta a perda de alguém.

Sabia que suas filhas estavam ali. Sentia a mão delas na sua. Sentia aquele calor distante em seus lados, mas por enquanto, não importava. Logo iria começar e tão logo iria acabar. Como sempre haveria de ser.

As pessoas finalmente se sentaram e a canção começou. E enquanto a canção rolava, já não era mais aquela manhã fria na igreja. Era o começo. Era o conhecer, e ela sabia que se lembraria disso pra sempre. Ele estendia um vinil com aquela canção, do mesmo jeito que estenderia milhões de presentes depois daquele, mas aquele era o começo e aquele era o que importava agora. Sorrindo, sorrindo de um jeito que fazia seu coração dar pulos fortes no peito, que explodia borboletas no estômago mesmo agora, e queimava, queimava por dentro saber que não veria mais. Era uma fotografia tão nítida na cabeça, como se fosse ontem, como se fosse uma imaginação antes de dormir de algo que poderia acontecer amanhã.

E no mesmo instante, eram talvez dez anos depois. E a canção ainda era deles, e ela sabia que o CD que ele estendia para ela, do mesmo jeito de antes, estaria ali. Saberia que ele fora buscar com a sua filha, porque era necessário. Era deles, e deveria ser. Todo casamento, todo amor tem sua música. Embalava os momentos certos, era cantarolada entre abraços, se construía sonhos, e aquela era a trilha sonora.

O tempo brincava travesso. Eram quinze, dez anos atrás, dois segundos antes de atingir o chão, duas horas no futuro chorando ao chegar em casa, dez anos no futuro se lembrando com carinho.

A música tocava, e naquele instante, sem conseguir respirar ou articular qualquer palavra, sentindo a mão dele na pele do rosto dela, sorrindo, limpando as lágrimas, um amor que ninguém podia ver, mas como o vento, ela sentia. Era ele, forte, sorridente, a voz ressonando nos ouvidos cansados, como água fria quando se tem sede.

Era um presente, ela sabia. Estava cansada, e escolheu outra música qualquer, não aquela. Mas ela tocou do mesmo jeito. Era um adeus, um beijo de leve no canto da boca, aquele último abraço. Era a canção deles, e embalou aquela última dança. E quando a realidade e o tempo voltassem aos eixos, seguindo seu rumo, só restaria aquele calor formigando no rosto, aquele aperto. Mas havia mais luz naquele instante. Sem palavras por enquanto e as lágrimas lavando tudo embora, mas sim, mais luz ali com ela. Havia luz.


baseado no relato de dione boller, sobre o dia em que ele se foi.