20100710

nas sombras daquele banco

Não havia dor maior, vazio maior para ele, do que ver tudo o que tu queria para ti na vida dos outros.

A noite já encobria o pátio, e as luzes amarelas de sódio cobriam o rosto de todo mundo, se fundindo com a luz branca dos longos tubos fluorescentes. Conversas, sussuros, e a luz artificial fazendo sombras nos rostos, mesclando riso e choro em cada um.

E lá estava ele, sentado sozinho nas sombras daquele banco. Esperando, como sempre. Esperando pela chance de agradar, de talvez ganhar um abraço, um sorriso. Ele sabia que não deveria fazer isso. Ela não sei importava e mandava-o se preocupar com ele mesmo, mas não sabia ela que era isso o que ele fazia. Uma gratidão, um abraço, um sorriso era pensar em si.

Ele já devia ter tido embora, ter ido fazer suas coisas, ter seguido com seus amigos. Mas ele sempre tenta, e agora espera.

Seus olhos acompanham o movimento das pessoas, até que um grupo de pessoas para mais adiante e ele a vê.

Tu já acordou de um sonho ruim, respirando pesado no meio da noite nenhuma, assustado por ver a pessoa que tu mais ama indo embora e não poder fazer nada?

Um arrepio horrível subiu suas pernas, um buraco sem fim se instalou em seu estômago, seu coração pareceu falhar. Os braços dela ao redor de outra pessoa, os lábios se abrindo, os olhos fechados. Outra pessoa tirando a minha garota pra dançar.

Enquanto seu mundo gentilmente acertava o chão, um sorriso triste percorreu seu rosto enquanto ele voltava para seu banco solitário. E esperou.

Um segundo, uma hora, não importava. Ela se sentou ao seu lado.

- Que bom que tu me esperou. Tentei vir mais cedo, mas nem tive como.

Nem um abraço, um beijo, um carinho. Só um garoto ao acaso sentado sozinho.

- Bem, tenho que ir indo, a gente se fala amanhã. - Ela encosta de leve o rosto no dele e quando ele pisca, ela se foi.

Suas mãos se cruzam em frente aos joelhos ao vê-la partir. Uma pedra do tamanho da sua diferença, do seu vazio, se entala em sua garganta.

- Obrigado por ter vindo.

Suas palavras se perdem no pátio agora vazio. Ele não pretende sair de lá tão cedo, não há pra onde ir, ninguém que esperasse por ele.

Em suas mãos cruzadas, os dedos escondendo a primeira parte de linhas e linhas sobre coisas que ele desejava.

E essas linhas tinham acabo de levantar e ir embora, deixando-o sozinho nas sombras daquele banco.


- Tu deveria aprender a hora de desistir.
- E já é hora de desistir?
- Já passou da hora.


t.

calendário

O interruptor, como sempre, trancou. Meus dedos desistiram dele assim que viram a luz azulada entrando pela janela aberta. O barulho das ondas enchia o quarto, o cheiro de maresia entrava pelas frestas. Era só mais um dia amanhecendo. Eu acho que eu nunca havia parado na porta e reparado nele de verdade. Cheguei a conclusão de que ele era o que eu imaginava quando eu pensava no quarto dentro da minha mente. Livros de memórias, CDs com músicas que cantam memórias, uma tela grande para acessar um outro mundo. Uma janela pra entrar a luz.

Atravessei o quarto sem fazer barulho. A cama ainda estava arrumada, como eu havia deixado noite passada antes de sair. Fui defronte à janela, e sentei, sentindo o colchão afundar embaixo de mim. O mundo acordava, e eu me peguei pensando quantas milhões e milhões de vezes aquelas ondas batiam ali. Era a única certeza, a única variável da vida delas. Como eu invejei as ondas naquela manhã.

Eu não sei quanto tempo eu fiquei ali sentado, mas não deve ter sido muito. O céu continuava naquele azul metálico, denso, sem uma única nuvem no céu. O mar era mercúrio. A luz suave, branca, fria, batia por todo o quarto. Acho que ao ver aquela luz que a verdade resolveu bater à minha porta. Quantas vezes eu tinha visto o rosto dela naquela mesma luz? Vi seu sorriso, vi seu gozo, vi a inocência do sono dela. Até mesmo lágrimas eu já havia visto dela por aqui. Havia tanto dela por aqui.

O que me fez chorar foi o cheiro.

O cheiro dela estava em tudo, e principalmente em mim. Era suave e único, parecia beijar minha boca e se infiltrar nos meus pulmões. Dava razão às minhas lágrimas quentes. Em um canto, a carteira de cigarro que nós preferíamos, que sempre se mostrava presente no final de tudo de melhor que nós fazíamos naquela cama. Era o nosso ritual, e era nosso, o que fazia toda a diferença. Um livro que ela esqueceu ali estava em baixo do travesseiro dela, do jeito que ela me mostrou mil vezes. Meus dedos percorreram a capa marcada, e o cheiro dela estava ali também. Abri a página e senti um nó na garganta ao saber que ela jamais buscaria aquele livro, e que talvez jamais terminasse de ler, ou chegasse na última página e visse as palavras que eu havia escrito, frases de saudade nos dias que ela não estava ali comigo. Minha respiração estava pesada, e eu sentia meus pulmões tremendo a cada respiração profunda. Sentia frio também, mas eu sabia que não haveria cobertor que esquentasse. O vácuo era frio. Era algo que eu sabia, Física era a minha área de escolha, junto com os livros que eu escrevia. Mas eu não sabia que poderia existir vácuo dentro do meu peito. Um vazio tão intenso, tão frio, e ainda assim, ecoando nas batidas fortes da velha fortaleza de gelo.

Um gemido baixo escapou sem querer, um tremor. Não havia nada que eu poderia fazer, e doía tanto. As manhãs que eram nossas agora eram algo que eu teria que aprender a viver sem. Todas as promessas, todos os sonhos, todas as peças, os rituais, as brincadeiras, eu teria que viver sem elas. Eu não sabia se eu conseguiria, me faltava o conhecimento de como eu faria tal coisa. Dor, a dor era real. Não havia ferimentos visiveis, não havia sangue. Mas doía, parecia comprimir, parecia que eu ia ruir pra dentro de mim mesmo, e tudo o que eu via, era ela. Eu me recusava a olhar para as fotos, para os desenhos, para qualquer coisa. Eu só olhava pro mar e sentia o livro nas minhas mãos, e as lágrimas queimando, derretendo. Quantas horas demoraria para o sono finalmente vencer o medo e eu conseguisse sonhar? Eu sonharia com abraços, com beijos, acordaria chorando. E me perguntaria o que aquilo significava. E o que eu me responderia?

Eu responderia que significa tudo.

t.

20100707

mais cedo do que o sol

Enquanto o sol lentamente, friamente, ia entrando no quarto, iluminando o seu rosto cansado, o mundo pareceu suspirar. A janela escancarada mostrava cenas que ele não reconhecia mais, e enquanto o sol subia e os pássaros voavam pela neblina baixa daquela manhã, lembranças brincam de esconde-esconde com todas as sombras do quarto. Uma música suave tocava em algum lugar do quarto, mal sabendo ela que à partir de hoje, nos anos que se seguirem, ela sempre vai provocar arrepios e uma dor grave, funda. Virou a melodia daquela dor.

Estava frio, mas ele não se importava, mal notava. Apele se arrepiava, e ele não sabia se era pelo frio, pela luz gelada da manhã. Podia ser do sono, do medo, da saudade. Podia ser do vazio.

O mundo acordava, o sol nascia, mas em algum lugar dentro dele, muitas coisas pareciam morrer. Algumas eram mortas pela mágoa, doce amargura. Como ele conseguiria seguir adiante? Queria ele saber. Queria ter a certeza do sol, que nasce e morre todo dia, seguindo seu caminho até sua luz entrar em colapso. Uma hora ou outra, ele sabia, ele iria descobrir como conseguiria, mas a certeza do desconhecido o assustava mais que tudo.

Ele não se importaria se ela tivesse ficado um pouco mais.


t.

20100706

teu fantasma aqui na chuva

As balas zuniam em volta da sua cabeça. A fumaça subia em espirais, o cheiro do sangue e sujeira se fundia com a pólvora quente. O peso da arma e a textura do cabo de madeira agredia sua pele.

Ele havia perdido tudo nessa guerra. Cada barulho de explosão e estampido de tiro
queimava fundo nas feridas muito mais profundas do que qualquer corte ou ferimento de bala.

tu vai (me amar ainda) esperar por mim?

O barulho de trovões enchia a noite, silenciando os gritos de guerra, os desesperados gemidos dos que só esperavam para morrer. Suas costas se encontravam em um ângulo torto em relação a pedra fria.

Todas as peças caindo ao seu desejo.

Ele teve que vir, era seu dever.

como tu supõe que eu vá (viver) lutar sem a certeza te (beijar) encontrar aqui de novo?

A chuva cai, mas não lava o sangue seco nas suas mãos. Como ele queria que a chuva o lavasse até os ossos, apagando os olhos dela, todos esses sorrisos e essas lembranças boas demais para que ele quisesse morrer ali sem elas.

A dúvida doeu mais do que a bala que atravessou seu pulmão.

eu vou voltar se eu (tu) quiser, mas tu (eu) não vou estar aqui, de qualquer modo

Enquanto seu rifle cai inútil na lama e seu sangue se diluindo na chuva e barro, ele deita sem gritos, sem desespero.

Os clarões iluminavam o céu, e bem ao longe naquela planície sangrenta, uma estrela brilhou pra ele. Se ele fechasse os olhos agora, a imagem ficaria gravada ali, pra sempre, gravada como um planeta, tão mais próximo dele. As mãos ensangüentadas e sujas se contraem inutilmente. A foto que escapa dos seus dedos se perde na lama, assim como ele a tinha perdido.


eu e ele estamos juntos (minha garota), muito melhores agora.
tu sempre soube que seria (tirada pra dançar por outro garoto) assim.
eu não esperaria por você (a chuva).
não precisa responder, não faria diferença (adeus).
boa sorte onde quer que esteja.


t.

20100705

tuas asas

O sangue gotejava lentamente. A pia brilhava escarlate entrecortada por pingos de água. O espelho era sujo, estrangeiro. O espelho não reconhecia o rosto parado em frente a ele, mas reconhecia sangue, é claro que reconhecia.

O rosto ali parado ostentava olhos fundos, brilhantes. Vazios. A face atrás dos óculos de aros finos ia lentamente empalidecendo. Seus braços abriam-se em arcos ao redor da cerâmica, seus pulsos pulsavam. Em um deles, a lâmina ainda se achava presa no meio daquele mar vermelho, que ia secando e coagulando contra o branco.

Se pudessemos ler aqueles olhos vazio, o que leriamos? Que pesadelos isso iria nos trazer? Noites delirando sobre até que ponto vale continuar tentando? Até onde as peças podem ser postas no lugar?

A lâmpada fluorescente pisca e falha. Ele está no chão, de braços abertos. O sangue formando asas para levá-lo onde ele mais quer estar. No espelho, escrito a dedo com o que sobrou dentro dele, o seu epitáfio em sangue, suas últimas palavras. Uma demonstração de tudo o que ele foi.

"Desculpa por essa bagunça."

t.

20100704

assim tão longe

O sol se deitava lentamente na água. O laranja se mesclava com o azul e rosa dos céus, e cada grão de areia parecia brilhar em chamas. Sob seus pés, bilhões de mundos escuros eram triturados por seus passos. A praia continha sua areia negra e ela continha um coração em dúvidas. Pensamentos como redemoinhos, olhos tristes que viam o sol se pondo e contemplavam seu fim, sabendo que ele voltaria a brilhar pro mundo pela manhã, mas não para todo mundo.

Seus pés cansados pisam em algo que poderia ter vindo daquela praia, daquele mesmo lugar, mas ela jamais poderia saber. O vidro ainda estava intacto, e fragmentos grudavam na superfície brilhante e transparente. Seu vestido simples, suave, fez voltas em suas pernas quando ela se abaixou para pegar a garrafa, e um sorriso de dúvida se formou em seu rosto ao ver que havia um pequeno canudo de papel dentro da garrafa. Seus olhos circundaram a praia, e só ela havia ali. Seus dedos abriram a garrafa, e ela balançou a garrafa até que o papel caisse em sua mão.

Linhas de tinta corriam a página, em uma caligrafia limpa. Ela falava sobre beijos longos, respirações pesadas em harmonia. Ela falava sobre um companheirismo de longos anos, de muitos poréns, mas indestrutível, inferrujável.

Quantos anos separam aquela praia de areias negras daquele amor? Seus olhos antes secos agora incubam toneladas quentes. Deve ter sido um amor tão bonito, ela pensa, para ela ter coragem de tocá-lo ao mar, e quem, qual pessoa, razão, ela queria mostrar tudo o que teve? O sol brilhou na garrafa enquanto ela caia aos seus pés, e seus passos não foram interrompidos pelos cortes enquanto ela ia adiante, cada vez mais adiante na praia de areias negras. Negras e agora salpicadas de escarlate.

Passos e mais passos, pensamentos em turbilhão, e ela vê cada vez mais perto o velho penhasco no fim da praia. Quantas vezes ela sonhou com aquele penhasco, sonhou com cada pedra, cada grão, cada mundo contido naquele enorme paredão, a apoteose de tudo o que ela era. A água laranja lambia as paredes, feroz, clamando.

Enquanto ia chegando mais perto, com sua cabeça longe, nas nuvens, não se importando com nada, nada, como sempre havia feito, outra garrafa.

Era irônico, não era?

Abriu-a e notou que a caligrafia era fina, rápida, cheia de agonia. De quem eram as lágrimas que borravam essa tinta? De quem era a dor e essa incerteza? Ela não sabia, mas entendia. Seus olhos queimavam enquanto percebia que não sabia se ele havia tido a chance de falar sobre tudo para quem ele escrevia, se algo havia mudado, e quantas noites ele deve ter passado acordado pensando nas chances de ela ler tudo. Por que ele não viu que estava no fundo, por que ele não viu o que vinha a seguir? E ela chora pela dor indireta, sem saber, sem saber.

Seus pés agora alcançavam o penhasco, e o sol já era abraçado pelo mar, velho companheiro de tantos outros corações quebrados. A vegetação fina balança ao vento, e o vento parece brincar entre as areias negras, sussurando tudo o que ela queria ouvir, tudo o que ela precisava ouvir. O sol brilhou, ela sorriu, e seus pés cansados e escarlates disseram adeus para a praia das areias negras.

Vamos dizer, então, que ela está tão melhor assim tão longe.

E ela nunca foi tão feliz como está sendo enquanto o mar a abraça junto com o sol.

Ela está tão melhor assim tão longe.