20100924

a volta pra casa (pt. I: infinito)

Eu volto, eu sempre volto. Eu volto melhor, mesmo tu não esperando por mim. Tu sabe que é verdade, eu sempre estive aqui pra provar que eu faço essas coisas.


Passava pouco do meio-dia agora. O ar estava abafado, elétrico. Algo sobre alguma tempestade para o final do dia. O sol, entretanto, ainda refletia no capô do carro, lançando raios de luz que refletiam nas lentes dos seus óculos, provocando explosões de luzes dentro do seu cérebro. As janelas iam fechadas, o ar-condicionado funcionava, e no rádio alguma música daqueles tempos tocava. Algo sobre a casa que Jack construiu. O ocupante do carro usava uma camiseta cinza, um jeans azul-escuro, seus tênis apertando suavemente o acelerador. No banco ao lado, algumas cópias de seu mais recente livro, alguns rascunhos apressados. No chão, uma pasta com o símbolo de algum raio esquecido por enquanto. Não havia pressa, havia dúvida. Via poucas pessoas na rua, ainda faltavam dois meses até o pico da temporada. Enquanto descia a colina em direção à cidade, suspirou de leve.

A cidade era uma velha conhecida dele. Dez anos atrás e ela era parada obrigatória, pelo menos uma vez a cada quinzena. Ele conhecia seus caminhos de cor, sabia onde ir, onde levar seus passos. Ele gostava de lá. Era pequeno, pacato, não havia crescido muito nesse tempo. Alguns prédios a mais, restaurantes que mudaram de nome, seus pássaros em todas as ruas. E descendo a colina de acesso, seu carro vinha descendo, absorvendo a luz do sol.

Parou na primeira entrada que achou. Precisava sentir o mar e lembrar de tudo. Fazia tempo, e ainda doía. Parou o carro, pensando que se a achasse, ainda iria apagar o carro na saída e xingar baixinho. Saiu do carro, e o baque do cheiro foi como uma avalanche, como uma onda maior das milhões que quebravam ao alcance dos seus passos. Assim como ele se lembrava, a cidade estava quieta, só o rugido das ondas e o assovio do vento tocando grãos minúsculos de areia contra seu corpo, batendo nos óculos e revolvendo seu cabelo. Sentou-se à beira da areia, em um murinho de cimento. Perdeu o tempo e perdeu o céu. Quando finalmente os anos o deixaram voltar para sua própria órbita, seus braços estavam avermelhados. Nada bom, velho sol. Nada bom.


- Eu nem imaginava que tu iria vir!
- Mas eu disse pra ti que viria, e quando eu falo, eu venho. E vamos lá, coloque um sorriso nesse rosto e me convida pra entrar.


O relógio no pulso já dizia que eram quase quatorze horas e ele decidiu seguir seu caminho. Não havia muito o que fazer por ali. Ele só precisava apaziguar aquilo tudo, enterrar e guardar todos esses momentos que mesmo dez anos depois ainda insistiam em voltar à noite, quando a hora é nenhuma e todos os sonhos do mundo gritam sua coragem.

Virou-se olhando pro céu, vendo nuvens que se formavam perto dos morros, ainda longe do sol. Abriu a porta do carro, escutando o tique-e-taque, e apertou o botão da capota. Ficou ouvindo o zumbido do motor elétrico liberando o teto do carro, retraíndo a capota. O couro claro, cobrindo os dois únicos lugares do carro, pareciam querer fugir e se juntar à areia. Talvez ele quisesse isso também, só se sentar lá e ouvir as ondas até que tu do desabasse como deveria ser.

Entrou no carro, colocou a chave na ignição, engatou a ré e foi saíndo, manobrando, até voltar pra estrada.

Ele estava com medo da tempestade.


- Eu tenho muita sorte mesmo, é só sair da tua casa que começa a chover, hein! Será que alguém vem me buscar?


Entrou na rua principal, sentindo o cheiro do mar, a brisa morna. Ele se lembrava como se tivesse sido ontem, era a quinta depois do mercado. Acelerou um pouco, mas sem passar dos quarenta por hora. Não era um dia de pressa.

Como sempre, como anos atrás, ele só lembrou da seta para virar quando estava em cima da curva, mas a fez mesmo assim. Subiu a pequena rua e seguiu à direita. A cada metro, eram lembranças. O sorriso dela parecia estar no seu ouvido, o calor da respiração dela no ombro dele, cada centímetro de pele colada na dele. Estava perto, cada vez mais perto. Parou em frente aquele lugar que tantas vezes antes havia parado. Não esperava mesmo ver aquela casa, mas sentiu um aperto engraçado na garganta ao notar o prédio que agora estava ali. Apagou o carro e ficou olhando em frente, ao longe. Tamborilava os dedos na direção sem se dar conta que era o ritmo de uma música que ele havia mostrado há muito tempo atrás, antes de sonhar com isso tudo.

Olhou para o relógio, eram quase quinze horas. As nuvens se pronunciavam ainda mais, o tempo ruim.

Ligou o carro, contornou a rua pensando se já era hora de ir embora.


- Quer vir dormir aqui? Eu vou te buscar.
- Eu quero ir, mas.. Mas eu tô com medo.
- Não precisa ter medo, eu vou cuidar de ti.


Parou em algum mercadinho aleatório. Não queria mais pensar muito, o sol nem parecia brilhar mais. Talvez chovesse antes do que ele pensava. Entrou e foi andando pelo mercado, simplesmente perdendo tempo, mais tempo, e ele teria que se contentar com isso. Ela se fora, e com ela muita coisa. Ninguém espera por ninguém e a cada noite é pior. Olhou para o relógio e o tirou. Colocou no bolso e avançou até as prateleiras do fundo, querendo pegar algum chocolate e ir embora, voltar pra qualquer lugar. Ele precisava tirar aquele amargo da garganta. Pegou qualquer um, não fazia diferença. No fim, nada fez muita diferença.

Foi caminhando devagar até o balcão, abençoando a penumbra que havia ali dentro. Todas as embalagens coloridas pareciam opacas, vazias por dentro. Como tudo que ele ainda tinha pra acreditar. Viu seus livros em uma pequena estante. Viu uma garota, só alguns anos mais nova, folheando um deles. Ele já havia visto aquele cabelo e aqueles quadris em algum lugar, não tinha?


- Não consigo extamente me ver como um escritor famoso. Provavelmente eu vou terminar como um escritor falído e alcóolatra.
- Faz o que tu quiser, só não para de escrever!


O relógio machucava a pele dele, devia ter a ver com a temperatura, irritando a pele. Tirou-o do pulso esquerdo e escorregou para dentro do bolso da calça. Em algum lugar, algo sobre estar perdido e ter alguém pra lhe guiar era cantado baixinho. Decidiu que veria como andavam os preços, buscando pelo seu livro preferido, desde sempre. A Tua Mão na Minha. Ele lembrava até hoje de ter começado a escrevê-lo quando ainda estava na faculdade, brincando de explodir coisas com eletricidade, desejando poder parar o tempo naqueles anos tão completos.
Esticou a mão esquerda, que estava sem relógio, revelando uma pequena tatuagem, o encontro de dois círculos. Passou pelo lado da moça que via seus livros também, torcendo pra não ser reconhecido. Havia fãs realmente engraçados, e alguns amedrontadores.
Ele sentiu. Foi quase como uma descarga elétrica, arrepiando até ele. A moça deu um pequeno pulo ao ver seu pulso passando ao seu lado em direção à prateleira. Temendo tê-la assustado, ele já repassava na mente mil desculpas pelo incômodo, quando viu também.


- Eu sempre quis tatuar o símbolo do infinito no pulso, é o meu lado nerd falando mais alto.
- Ah, eu também sempre quis, nem vem!


O pulso dela mostrava o mesmo que o pulso dele. Dois zeros colados, um oito deitado, tanto faz. Era o infinito, o infinito naquele mercadinho escuro no meio de uma praia que há muito ele havia deixado. Seu estômago deu voltas, suas pupilas contraíram rapidamente para irem se dilatando ao extremo, sua pele arrepiou.

Simplesmente não podia ser.

No meio de todas as probabilidades, no meio de infinitas estatisticas e chances e tudo o que ele acreditava. Ela ia se virando, e o tempo pareceu segurar todos os seus cavalos e fazer daquele mais um desses segundos que duram pra sempre e tu acaba lembrando pra sempre em todos os dias que o sono demorar pra vir. O contorno daqueles olhos, tão únicos, que ele havia reparado logo, e o cheiro dela, o cheiro dela o fazia querer perder os sentidos. Eram os mesmos lábios, os mesmos olhos, as mesmas linhas. Era espantoso, e o chocolate e o livro caíam de suas mãos frouxas, e os braços, lado a lado.

Um segundo que durou pra sempre.


- Eu volto pra te buscar.



t.

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