20120206

a última dança do planeta

Acordei tarde, sabendo que seria hoje. Olhei para o relógio, e ele parou. Me arrepiei, e sabia que esse era o sinal. Levantei e saí pela porta, deixando a jaqueta de lado, junto com as chaves do carro. Ela ficou aberta, não faz diferença. Crianças riam ao meu redor, jogando bola e correndo no sol, mães levando seus bebês para passear. Era uma cena linda, se não fosse a fumaça dos carros, as poucas árvores. Cinza, tudo cinza. Azul e cinza, céu e cidade, rachada, enferrujada, cansada. Acho que o mundo todo estava assim, mas isso iria mudar.

Só mais um dia normal, e sete bilhões de pessoas levando suas vidas. No outro lado do mundo, algumas dormem, envoltos em sonhos. Será que eles viam o que eu vi nos últimos sonhos? Será que eles saberão quando acontecer? Meus pés me levam pela calçada, enquanto vejo lixo pelas ruas, acidentes, gritos. Todo dia, e agora também. Nós, humanos, tão insociáveis, vivendo em sociedade. Não me espanto em ver o mundo chorando, as pilastras de tudo ruindo. No fim, somos nós os culpados de tudo, e ainda assim nos achamos invencíveis.

Será que ninguém reparava que todos os relógios estavam parados? Todos tão absortos em seguir sua vida, em chegar em casa, sentar no sofá e ir dormir tarde. Todos prisioneiros na própria liberdade. O sol parecia iluminar cada faceta das pessoas que eu nunca vi. Talvez eu fique por aqui, sentado no meio disso tudo, desse caos, dessa falta humana de humanidade.

Mil seiscentos e vinte segundos. E eu entro no grande prédio comunitário do centro. Eu sabia que era improvável, mas algo me dizia que todas as portas das escadarias até o terraço estariam abertas.

Por mais claro que o dia tivesse começado, eu sabia que não seria assim. As portas iam se abrindo uma a uma, lentamente levando meus pés até o topo. Eu ainda consigo ouvir a cidade por entre as paredes de concreto e vigas de aço, o eterno barulho do formigueiro que eram as cidades grandes.

Abri a porta final, e o sol subindo pelo leste banhou meu rosto. O cheiro seco do pó que cobria o topo do prédio rodopiou e entrou nas minhas narinas. Antenas cobriam o cenário e a lâmpada de aviso aos aviões estava desligada. Fui até a borda e sentei. Meu pai me contou que havia lido que o mundo não iria acabar com uma explosão e sim com um suspiro. E eu sabia que seria o caso. Quem mais saberia? Eu acho que algumas, mas não muitas. Talvez eu viesse a ver mais algumas em topos de prédios como eu.

Não com uma explosão, com um suspiro. A cidade respirava, sim. Eu ainda conseguia ver. Carros, ônibus, táxis. Pessoas esperando em sinais, alheias ao que acontece ao próximo, e às vezes a si mesmo. Mendigos nas esquinas, vendedores em barracas espalhadas pelo cenário. Tudo cinza e tudo minúsculo. Tão longe e tão perto de mim, aqui em cima, sentado sozinho esperando.

Eu sei que ainda tenho tempo, mas a espera é cansativa. Quando pequeno, eu pensava nesse dia. Será que haveria anjos? Fogo? Dor? Nunca fui religioso, mas talvez quando esse dia chegasse, eu mudaria. Só não esperava que chegasse tão cedo. Cedo o suficiente para me fazer sentar aqui e descansar os olhos na paisagem, e não nos anos que perdi em escolhas que não queria ter tomado, amargurado pelo desapontamento. Só me arrependo de não ter trazido algumas pessoas aqui. Vai ser difícil passar por isso sozinho, mas quem sabe no final, estejamos todos juntos. O destino hoje é um só.

Reparo no muro em que me apoio. Cinza, quente pelo sol. Rachaduras correm de lado à lado. Vejo uma escritura em caneta preta, um coração, duas letras dentro. Talvez isso fique aqui depois do fim. Talvez alguém tenha, afinal, eternizado algo em um muro em cima de um prédio perdido na selva de pedra.

Não ter medo, estar tudo bem. Quero terminar assim. Livre, envolvido em curiosidades e lembranças. Nada de medo. Não acho que alguém gostaria de desperdiçar sua última hora em medo. Eu passo as pernas pelo muro e largo meus sapatos no vazio. Rolando, rolando, rolando, sumindo da minha vista.

O céu está mais escuro. O vento mais forte balança meu cabelo. Meu óculos vai rolando pela amurada e também se perde no vazio. Parece uma grande tempestade se aproximando. O sol logo será coberto. O oeste inteiro já está cinza, escuro, com raios azuis e brancos e vermelhos cruzando o céu, se chocando e fazendo o ar vibrar. Todos os carros na rua estão parando. Acho que a nossa hora está terminando. As pessoas nas ruas começam a se mover mais rapidamente. Carros batendo, subindo calçadas. Será que finalmente olharam para seus relógios, e se deram conta de que não há mais tempo? Todos os pecados, todos os arrependimentos. Todas as cartas de amor não assinadas em fundos de gavetas, todos os dias perdidos, horas paradas. Isso tudo é confusão ou remorso? Talvez, eu acho, seja só compreensão. Acabou.

É a última dança do planeta. Gotas grossas de chuva começam a cair e o sol se foi. Todos os carros param e as luzes dos prédios se apagam. Todas as cabeças viram para cima. O silêncio é gigantesco. Até mesmo os raios pararam e o barulho da chuva é só um murmúrio. Abro os braços e abraço o fim do mundo.

A chuva arrepia meu corpo, e o mundo suspira. E o vento dá lugar à luz. Nem fria, nem quente, só luz. Ainda estou caindo e o fim está chegando.
Só mais dois segundos agora.



ut primitus in !

Um comentário:

  1. Oi (:
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