20090903

o chamado da tempestade.

"Nós..."

Meus olhos se abriram e a frase de uma única palavra brilhou em vermelho logo abaixo da foto de uma pequena família que me pareceu tão familiar.

Senti como que o vermelho da frase havia se fixado nos meus olhos, tamanho era o ardor neles.

Um relâmpago cortou os céus lá fora, a apoteose da eletricidade, da força elétrica negativa da natureza. Nenhum barulho vinha de dentro de casa além de um leve choro de criança vindo do quarto ao lado.

Meu corpo parecia estranhamente leve, porém exigia concentração para movê-lo, como se fosse uma fia teia de aranha tentando se manter inteira num dia de ventos.

Levantei-me da cama olhando para o retrato. Duas crianças e possivelmente seus pais me sorriram de volta de sua eterna paralisia. Por que me pareciam tão conhecidos? Tão imensamente familiares, ao mesmo tempo que não os reconhecia?


Meu olho arde, minha cabeça dói, meu pulmão chia levemente.


Desviei o olhar com custo e olhei em volta. A janela dava para um pátio verde que se perdia na chuva, crivada de raios. Ao lado da janela havia uma pequena escrivaninha com papéis que eu não conseguia ler. Uma pequena caixa retangular jazia caída entre os papéis. Apesar de não poder ler o nome do remédio, conseguia ver o abismo de cor negra da tarja a cada relâmpago.

Ouvi de novo o choro da criança. Decido ir até a porta e saio num frio corredor.


Olho arde, cabeça dói, pulmão chia levemente.


Caminhei até o fim do corredor e me virei para encarar uma porta com um nome de conseguia apenas ler o começo.

"Mary..."

O resto se perdia em embaralhados riscos.

Um raio iluminou o quarto e eu entrei.

Sentado numa cama simples, envolta em cobertas como se fossem sua defesa, seu esconderijo, havia a pequena garota da foto. Era impossível ver seus olhos. Seu choro baixinho enchia o quarto.

Ela se levantou e seus olhos cruzaram o meu por um segundo.

Ela passou correndo por mim.

Tentei chamá-la pelo seu nome, mas não consegui.


Arde, dói, chia levemente.


Segui a garota de volta até o quarto de onde saí.

A cada passo que dava em direção ao quarto, a tempestade parecia triplicar seu poder. Os raios pareciam atravessar até mesmo as paredes. Cada trovão ecoava no meu peito.

Cheguei até o quarto e encontrei a pequena garota ajoelhada ao lado da cama. Senti algo quente na minha mão e vejo que a pequena Mary está com as mãos cruzadas em cima da maõ de alguém na cama. Um raio ilumina a cama.

Os olhos abertos, inchados e vermelhos. A testa suada e os pulmões tremendo em últimos espamos, em uma tentativa falha.

Num segundo, eu soube. Mary-Jane não tinha nada a ver com isso. O remédio tarja preta que eu havia tirado do armário de remédios do quarto dos meus pais não tinha nada a ver com isso. Os meus motivos também não tinham mais nada a ver com isso.

O grito infito antes da queda se perdeu na minha garganta quando o último raio daquela tempestade, que delimitava os últimos batimentos do meu coração cansado, ecoou no desconhecido mundo dos que já foram.



(our precious girl, she can't be gone)
(I wash my hands of you)



Thomas Hanauer. 03.09.09

Nenhum comentário:

Postar um comentário